O passado terça-feira, 7 de maio de 2024, tive o prazer de assistir à nova turnê da banda russa de black metal atmosférico GRIMA, Under The Sign Of The Last Spruce 2024, onde promoveram seu novo EP ao vivo “Red Forest Ritual”. Estavam “acompanhados” de ULTAR (banda russa de black metal), que continua promovendo o álbum de 2022 At The Gates of Dusk. O entrecomillado em “acompanhados” se deve ao fato de que os integrantes de uma banda são os mesmos da outra (salvando as distâncias entre os membros de estúdio e de palco): Pavel Dil (baixo), Denis Susarev (guitarra), Vlad Yungman (bateria), Max Sysoev (guitarra) e Gleb Sysoev (voz e guitarra).
Sobre as bandas:
Fruto de um grande espírito criativo, os gêmeos Max e Gleb Sysoev têm sido especialmente prolíficos em projetos e álbuns. Tudo começou em 2011 com um pequeno projeto de post-black metal chamado DEAFKNIFE. Este evoluiu de um som black metal mais cru para um com elementos mais melódicos, mas com uma semente temática que marcaria os futuros passos da banda: a influência dos contos do mestre do horror cósmico Howard Phillip Lovecraft. Assim, em 2016, DEAFKNIFE tornou-se ULTAR, nome que reflete a influência do mestre Lovecraft e sua terra dos sonhos (especificamente, do conto Os Gatos de Ulthar).
Paralelamente, em 2014, os siberianos iniciaram um projeto paralelo, GRIMA, cujo nome poderia lembrar o pérfido personagem do Senhor dos Anéis (Língua de Cobra), mas seu significado difere. Em diferentes idiomas (como o espanhol, por exemplo), é uma palavra que transmite a ideia de desconforto, desagrado ou um medo muito intenso, mas em outros como o inglês antigo, o proto-germânico ou o islandês, representa o conceito de uma aparição, assim como o de máscara, capacete ou visor (sendo este último um aspecto fundamental da proposta conceitual de GRIMA).
Com um som black metal muito mais atmosférico, GRIMA é uma banda inspirada em uma natureza especialmente hostil, que consegue impregnar toda sua obra de uma atmosfera gelada e desoladora da Sibéria em que os artistas cresceram. Apesar de ser um projeto posterior e mais focado no trabalho em estúdio, acabou ganhando muito mais popularidade do que qualquer outro de seus projetos, e tornou-se seu principal atrativo, sendo talvez a banda que conseguiu cultivar um som mais característico, incluindo toques de sons típicos da Rússia, ao utilizar acordeões e bayans (um tipo de acordeão típico da região). Entre 2017 e 2018, os gêmeos Sysoev também se juntaram à banda de Post-Black metal SECOND TO SUN.
Mas voltemos à turnê. Esta não foi isenta de incidentes, já que os russos tiveram dificuldades para obter seus vistos de artista (e posteriormente, não puderam renová-los, sendo obrigados a cancelar muitos shows). Em nenhum momento parecem ter oferecido uma explicação, mas nos tempos que correm, é fácil intuir quais podem ter sido essas razões.
O show do ULTAR
E focando agora na noite, é digno de nota que antes de tocar, o local Upload estava generosamente cheio, o que indica muito boas notícias quando pequenas bandas de black metal siberiano são capazes de convocar tantos fãs do gênero em uma terça-feira à noite. De fato, as bancas de merchandising de ambas as bandas estavam quase vazias devido à boa recepção que tiveram neste e em shows anteriores.
ULTAR apareceu no palco com uma aparência solene e bem vestidos para a ocasião, com os rostos pintados com a característica maquiagem “corpse paint” do black metal, e vestindo longos casacos góticos que lembravam os uniformes militares clássicos do passado, impregnando toda sua presença de negro (até mesmo pintaram as mãos).
Como um grande fã da narrativa de terror, estava especialmente ansioso para ver ULTAR ao vivo, com músicas em seu repertório com títulos tão sugestivos da obra do mestre Lovecraft como “Azathoth”, “Kadath”, “Nyarlathotep”, “Father Dagon”, “Innsmouth” ou “Shub-Niggurath”. Os fãs do autor de Providence vão entender. Em todos os momentos, os siberianos mantiveram posturas comedidas, sombrias e solenes. Verdadeiros cultistas de “aquele que rói, geme e babava no centro do vazio final” e de seu enviado, o caos rastejante, que sussurra na escuridão.
Apesar dessa última referência, Gleb Syosoev demonstrou uma voz absolutamente versátil, capaz de recorrer aos arrepiantes “shrieks” do gênero (vozes especialmente agudas), combinados com outras vozes mais rasgadas e também tons graves e guturais. Ele é um cantor com muitos recursos vocais dentro do gênero do black metal.
Quanto à bateria, seu som prevaleceu o tempo todo, estabelecendo as bases da ambientação com a rapidez extrema do pedal duplo (batidas características do black metal). Junto com a voz de Gleb, protagonizaram a fonte sonora principal do show.
O que me leva a um dos poucos pontos negativos do som durante o show (problemas que também afetariam o show do Grima), ao sentir que o som do baixo e especialmente o som das guitarras, estava especialmente abafado e distante, e embora isso contribuísse para a atmosfera geral (especialmente com esses rápidos dedilhados de tremolo picking das guitarras), eu teria gostado muito mais de poder apreciar os momentos mais melódicos das mesmas, em vez de ouvi-las como se estivessem presas além de uma parede de gelo gélido.
É algo que achei especialmente duro na fascinante “Xasthur”, composição que facilmente é a mais melódica (e minha favorita) de ULTAR (e apesar disso, estou muito feliz por tê-la ouvido ao vivo). Vale mencionar, no entanto, que músicas mais novas como “Through The Golden Gates of Dawn” ou “Evening Star” soaram bastante bem apesar do problema mencionado.
Agradecidos pela boa recepção que tiveram em Barcelona, ULTAR deixou o palco com essa mesma atitude solene e melancólica, não sem antes imortalizar o momento.
O intervalo entre as bandas passou rápido, conversando com outro fã russo (com quem resulta que já tinha compartilhado vários shows antes, sem saber até então), que me comentava o quão incrível achava ver tantas pessoas com as camisetas das bandas (parece que as turnês nos anos anteriores também devem ter funcionado muito bem) já que o show que ele assistiu em São Petersburgo (o que poderia ser considerado “jogar em casa”), enquanto na Espanha estávamos confinados em nossas casas devido à pandemia, isso não aconteceu, e também comentando o desejo de ver a próxima banda (também concordando que foi uma pena não poder ouvir os toques mais melódicos do ULTAR). Após a espera, chegou GRIMA.
O show do GRIMA
E embora a caracterização do ULTAR tenha sido correta, a do GRIMA me deixou sem palavras. Do nada, apareceram seres totalmente imponentes no palco, com túnicas negras rasgadas e máscaras de árvores, entre eles, Morbius (o alter ego de Max Sysoev). Pouco depois chegou Vilhelm (alter ego de Gleb Sysoev), e que espetáculo mais indescritível.
Vilhelm representava um espírito implacável da natureza, a presença física da própria floresta siberiana. Também com uma máscara de árvore, de sua túnica rasgada apareciam como braços um amontoado de galhos, uns detalhes absolutamente espetaculares. Como se tratasse de um show temático, a sensação provocada foi que os cultistas do ULTAR realmente conseguiram invocar algo indescritível retirado dos mitos de Cthulhu. Talvez esses seres outrora tenham sido humanos, mas depois de se livrarem de seus corpos como se fossem cascas, apenas o espírito gelado da floresta e da desolação permaneceram. E de tudo isso, nasceu GRIMA.
De fato, a imagem de Vilhelm me lembrou o arrepiante conto de outro mestre do horror, “O Wendigo”, de Algernon Blackwood (por sua vez, fonte de inspiração para Lovecraft), personificando essa lenda de espíritos malignos que representam o chamado da natureza, tentando persuadir o animal que todo humano carrega dentro. Os movimentos e gestos do cantor, assim como dos outros membros, diferiam dos do ULTAR, agora muito mais ominosos, lentos, trêmulos (talvez por um frio que lhes dominava a alma).
E menção especial às mãos de Vilhelm, uma vez que se livrou dos galhos que tinha por braços. Os gestos e contorções de suas mãos lembravam as representações do expressionismo alemão e, mais geralmente, do cinema de terror mudo, especialmente de Lon Chaney ou Bela Lugosi, que “falavam” com seus gestos.
Quanto ao som, pegando o testemunho do ULTAR (e portanto, sendo aplicável ao que foi dito anteriormente sobre os brutais blast beats da bateria, grande alcance vocal e rápidos dedilhados de tremolo picking na guitarra, lembrando que se tratava dos mesmos membros), conseguiu consolidar essa grande atmosfera visual, com uma maior complexidade. De fato, em alguns momentos (e apesar de serem faixas pré-gravadas) pudemos ouvir o bayan, bem como outros sons que transportavam para as florestas geladas, como os uivos das corujas entre os sussurros do vento gélido.
GRIMA fez brilhar músicas como “Giant’s Eternal Sleep”, “Siberian Sorrow” ou “Moonspell and Grief”, bem como minha favorita “Never Get Off The Trail”. Apesar de, por momentos, achar que houve melhorias no som das guitarras (podendo desfrutar das passagens mais melódicas), permaneceu a sensação de que deveriam ter aumentado o seu volume em relação ao resto do som para poder ser considerado um show perfeito.
A recepção do público ao ULTAR foi boa, mas o clamor pelo GRIMA foi outro nível, pedindo mais músicas mesmo minutos após a banda ter deixado o palco. Mas antes de sair, também optaram por imortalizar o momento.
Em resumo, foi uma noite impressionante em termos de ambiente e encenação, que demonstrou que seu som é capaz de reunir muitos fãs do black metal atmosférico (e como não podia deixar de ser, sucumbi ao chamado do selvagem e tive que pegar uma camiseta do Grima). Talvez para a próxima visita dos siberianos, seria bom poder desfrutar ao máximo dos sons mais melódicos das guitarras, para poder assim desfrutar de uma noite para recordar (embora com toda essa encenação, ficará na minha memória por estranhos éons).