Entrevista realizada em 23/10/2009
Feita por Luís Felipe e Cremogema
Com Cannibal (baixo e voz) e Celo Brown (bateria)
Olá, pessoal do Cultura em Peso. Aqui é Luís Felipe, estou aqui junto com meu amigo Cremogema e agora vamos falar com Cannibal (baixo/voz) e Celo Brown(bateria) da banda Devotos, de recife, que se apresenta daqui a pouco no Jambolada 2009.
Luís Felipe: Primeiramente, como você percebem a trajetória da banda que surgiu no “Alto José do Pinho” em Recife e que já tem mais de 20 anos?
Cannibal: É o que a gente sempre buscou, o que a sempre sempre sonhou em conquistar. Mostrar pro Brasil e para o mundo que existe um cenário de música bem eclética em Recife e principalmente no subúrbio como em “Alto Zé do Pinho”.
Então, nosso dever não é só chegar e tocar, mas divulgar também, pois tem muita coisa legal lá que pode ser trazida pra cá, não só para Uberlândia mas para todo canto do Brasil.
Uma das maiores conquistas nossas é justamente saber primeiro fazer com que as pessoas saibam que existe o “Alto José do Pinho” e, pô, a gente já chega aqui e todo mundo já canta a música ou comentam alguma coisa sobre “Alto José do Pinho”. Interessante também saber que muita coisa boa, nova e legal surgiu em Recife de vinte anos pra cá, e ainda tem muitos frutos a render.
Pernambuco tem muita coisa boa pra mostrar pra rapazeada do Brasil.
Luís Felipe: E qual é expctativa pro evento de hoje?
Celo Brown: A expectativa é total. Já faz um tempo que a gente não vem em Minas Gerais, e em Uberlândia é a primeira vez, então dá um frio da porra na barriga (risos). Não vejo a hora de subir no palco!
Luís Felipe: Eu sei que vocês vão fazer em 2010 uma turnê europeia. Como que está a expectativa pra essa tour “na gringa” aí?
Cannibal: É como se a banda estivesse começando agora, né? Em 88 a gente tinha aquela expectativa de tocar, aquela coisa toda, é o mesmo sentimento “na gringa”, pois a gente nunca foi. Na verdade, em 2000 nós tocamos em Portugal, mas só tocamos em Portugal e voltamos pro Brasil. Agora é turnê européia e vai durar basicamente um mês e alguns dias, então, é como o Celo falou, dá aquele friozinho na barriga.
É como se estívessemos começando tudo de novo porque lá ninguém conhece a Devotos, não é como aqui. Então a rapazeada deve se perguntar: “será que é bom mesmo ao vivo? Será que a banda é como a galera fala?”. Então lá na Europa não vai ter isso, e a gente vai com aquela vontade como se estivesse começando a banda e vamos ver o que vai rolar lá.
Mas também, como eu falei na primeira pergunta que você fez, é uma coisa que nós queríamos há muito tempo. Não é de agora que nós queríamos fazer uma turnê europeia e agora isso está se concretizando. Quem trata disso é um pessoal lá Recife. Então tendo essa articulação com a rapazeada foi que fez a gente ter coragem de ir pra lá, pois sem os amigos e sozinhos com certeza não conseguiríamos.
Luís Felipe: Como a situação do Nordeste influencia nas composições do Devotos?
Cannibal: O Devotos é uma banda que, musicalmente falando, vive do cotidiano, do que está rolando, do que a gente vê e do que a gente vive. Então como a gente sabe que os problemas sociais, no Brasil e no mundo, não estão nada perto de serem solucionados, e que por outro lado tem muita gente dando boas soluções, a gente faz questão de divulgar isso. No começo da banda a gente só protestava e só falava mal, e de uns dez anos pra cá a gente começou a querer também dar alguma solução e falar de pessoas e de ações que já são feitas positivamente.
Cada vez mais o que a gente fala é o que a gente vive e o que a gente vê, não tem muita ficção em cima disso tudo. A banda foi formada para falar dos problemas sociais, principalmente do que rola no “Alto José do Pinho”. A gente sabe que tem muita coisa ainda pra ser solucionada mas a gente viu que a maioria das coisas tem uma certa direção pra se caminhar bem. Eu digo isso porque a articulação lá no “José do Pinho” não gira só em torno da Devotos, gira em torno de outras bandas e assossiações. Tudo isso já está em articulação, não esperam só o Devotos pra fazer isso.
independente de todas essas bandas ainda tem uma ONG que nós fazemos parte chamada “Alto-Falante”. E a primeira proposta da ONG foi ter uma rádio, também com o nome de “Alto-Falante”, com o objetivo de colocar os próprios moradores para fazer os programas e eles mesmos falarem dos próprios problemas sociais que eles acham que existe no “Alto José do Pinho” e falar de como esses problemas sociais poderiam ser resolvidos. Porque até então falar mal é muito fácil, foda é você dar solução para aqueles problemas. Então basicamente é isso que a gente fala nas letras e nas músicas.
Luís Felipe: Como é a cena antiga, da época que o Devotos começou, e a atual do punk e hardcore do Nordeste?
Celo Brown: Na época que o Devotos começou era tudo feito na ali na garra, no dia-a-dia, na força mesmo. Não havia toda essa tecnologia que há hoje. E isso continua hoje. A periferia continua trabalhando, os movimentos continuam trabalhando, independente de ser punk, heavy-metal e movimento de música nordestina. Mais descentralizado do que antigamente, mas isso continua, com o apoio da tecnologia como internet, acesso a equipamentos melhores e comunicação.
Cremogema: Antes a banda se chamava “Devotos do Ódio”. O que levou a banda à mudar de nome?
Celo Brown: O antigo nome causava uma barreira entre a gente e aonde a gente queria chegar. Parecia que “Devotos do Ódio” era uma banda que fazia apologia à violência e à tudo que é ruim. Então, o nome se tornou uma barreira para o que a gente almejava alcançar. Então a gente falou: “vamos tirar o ‘Ódio’, já que este nome está impedindo a gente chegue a certos lugares. Por causa do preconceito das pessoas com o nome a gente teve que traduzir que era de outra forma. Mas o som, a mensagem e as letras continuam como sempre.
Cannibal: Essa coisa que o Celo falou é uma coisa que eu concordo e assino embaixo: você pode mudar o nome da banda mas você não pode mudar seu caráter, não adianta. Mudou o nome mas não tinha como a gente mudar o tipo de som nem o tipo de letra, pois a banda surgiu pra fazer o que a gente faz. O nome pra nós é só um nome. Às vezes a gente fica meio “pilhado” por certas pessoas que se prendem ao rótulo, se prendem ao nome. Eu acho que pra você mudar um quadro social você não precisa ser punk, não precisa ser metaleiro, não precisa ser rap, não precisa ser emo. Você não precisar de nenhum estilo. Basta vontade de fazer e ter na sua cabeça que aquilo ali é pra mudar positivamente num padrão social, e não mudar só pra você, pro seu grupo e sua turma. Então basicamente é isso, o nome é só um nome.
Cremogema: Você citou que haviam várias barreiras pra vocês por causa do nome “Ódio”. Onde vocês perceberam que as portas começaram a se abrir depois que o nome da banda mudou?
Cannibal: A gente sente isso primeiramente pelo que as pessoas falam. Elas perguntavam se a banda fazia apologia à violência. Em vários eventos a gente já se debateu com isso. Já fomos convidados pra eventos de luta-livre em Recife e a gente nunca topou tocar. Sempre que tinha alguma coisa com a “Devotos do Ódio”, as pessoas achavam que era algo relacionado a isso.
Quem conhecia a banda e o nosso trabalho, não tinha esse problema. Mas as pessoas que não conheciam a nossa história, sempre nos ligava a esse nome (ódio). E uma das coisas que acho que mais mudou positivamente foi porque fomos nós que escolhemos mudar, eu, Celo e Neílton. Há muito tempo a gente já era afim de mudar o nome da banda. Então quando os três que são os principais da banda concordam, não tem nenhum empecílho. Eu poderia estar aqui brigando agora: “pô, Celo, poderia ser ‘Devotos do Ódio’ ainda”, e o Neílton brigando: “Não, Devotos é legal”, mas nunca teve isso com a gente. Positivamente entre nós já está legal, e o que vai acontecer com os outros, depende da gente e do que a gente vai passar pra eles. Pra nós está sendo positivo por causa disso.
Cremogema: Nesses anos todos, quais foram as principais dificuldades que você percebe que o Devotos venceu e que hoje você se orgulha disso?
Cannibal: Primeiro, a queda do preconceito com a comunidade do “Alto José do Pinho”. A banda surgiu realmente pra mudar o quadro social dentro da comunidade. Aos poucos a gente conseguiu isso e hoje em dia a gente vÊ que tem um maior número de pessoas correndo atrás disso também. E a gente vê isso porque o preconceito com o “Alto José do Pinho” era muito forte e muito grande. A comunidade só aparecia nas páginas policiais, só se falava de lá quando morria alguém. quando era preso algum bandido ou quando tinha algum assalto.
A imprensa só subia lá pra cobrir esse tipo de matéria. Quando a banda surgiu e quando a banda começou a ser vista, a imprensa ligava lá pra fazer algum tipo de matéria, e a gente convidava a imprensa pra subir lá pra poder fazer a matéria. A gente nunca ia lá na Tv ou no Jornal, a gente chamava a TV pra subir o “Alto”. E isso deu um impacto muito grande até na própria comunidade porque foi um espelho pra ela. As pessoas mesmo começaram a se ver, começaram a ver que um quadro social poderia ser mudado através de uma música, através de uma rapaziada que morava lá, que nasceu lá e que ninguém estava nem aí.
A gente sofria preconceito da própria comunidade. Nós demoramos quatro anos pra tocar no “Alto José do Pinho”, só depois de quatro anos é que fomos tocar na comunidade, porque ninguém queria que a gente tocasse lá. Do jeito que a gente se vestia, do jeito que a gente era, as pessoas de lá mesmo tinham preconceito com a gente. Então, essas mudanças que a gente percebe que são muito positivas.
Hoje em dia, a gente pode ver… a maioria dos universitários que estão pagando suas cadeiras sobem no “Alto José do Pinho” pra fazer suas matérias. Algumas pessoas da comuniade são convidadas pra participar de algumas palestras que estejam rolando nas faculdades ou até em algumas empresas, como eu, que já fui convidado pra dar alguma palestra. Então a gente vê que essa questão do preconceito mudou, e mudou muito, através da música. A gente conseguir mostrar que antes das bandas existia já o “maracatú”, o “afoxé”, existia os “caboclinhos, existia uma cultura global, uma cultura nordestina há muitos anos, que sempre existiu no “Alto José do Pinho” e que nunca foi vista, e só foi vista depois que as bandas surgiram, então pra nós isso já tá pagando tudo.
Hoje em dia o maracatú roda a Europa, o afoxé roda a Europa e essa rapazeada consegue se sair até muito mais do que as bandas. Então, isso pra nós foi uma batalha muito bem vencida e a gente se orgulha muito de falar nisso. Apesar de que a gente tem o pé no chão e sabe que falta muita coisa pra nós mesmos. Mas a gente sabe que ao menos a quebra do preconceito com a sociedade global a gente já venceu há muito tempo.
Cremogema: Existe um documentário que fala de toda a tragetória do morro, que fala da violência, das consequências, e como isso foi mudando com o tempo. Tem até uma estória da rádio que foi fechada. Você pode explicar um pouco disso pra gente?
Cannibal: Nós temos uma rádio chamada “Alto-Falante”, e essa rádio na verdade é o primeiro projeto da ONG que nós fazemos parte. A ideia era fazer com que os moradores também falassem, também dessem suas opiniões, porque nem todo mundo quer ser músico. Mas você pode reivindicar de outra forma, por meio de um fanzine, de um jornal, de um livro, de uma revista, fazendo música, e também pelo rádio. Falar mesmo do que está acontecendo.
Como nós não conseguimos ser “FM”, justamente por causa do senhor ministro Hélio Costa, que não dá concessão às pessoas que querem realmente mostrar pra sociedade seus deveres e seus direitos, ele só dá concessão aos políticos e às igrejas, a gente ficou pensando: “pô, como que a gente vai fazer já que a gente não consegue concessão?”, aí resolvemos fazer uma rádio difusora. Então a rádio só funciona lá dentro da comunidade, nos postos. Deste mesmo modo, nós conseguimos montar rádios também em algumas comunidades vizinhas e até em uma comunidade que faz parte de outra prefeitura.
Cremogema: As rádios são todas independentes ou são interligadas?
Cannibal: São todas independentes, a gente vai lá e monta, e eles mesmos fazem a programação. As rádios se interligam quando tem alguma reunião, mas cada um faz a sua programação do seu jeito. A gente pensa que os problemas sociais podem ser iguais em qualquer comunidade em qualquer lugar, mas a forma de se resolver é diferente, porque cada comunidade tem a sua cultura e cultura é o modo de vida de um povo.
Então, o modo de vida do “Alto José do Pinho” realmente é música, respira música, mas tem comunidade que o modo de vida é o esporte. Você pode implantar a música, mas não pode tirar a essência dele que é o esporte. Então não adiantaria neguinho chegar com esporte lá no “Alto José do Pinho” que não ia dar certo. Ele pode chegar com uma música e depois colocar o esporte. Então, o modo de se resolver é bem particular de cada comunidade. Você chega lá, mostra do seu jeito como que se faz e se tiver alguma dificuldade, nós estamos juntos pra lutar pra que se resolva cada vez mais o mais rápido possível. É assim que a gente pensa. Não é uma coisa que a gente acha que seja o certo, mas é uma coisa que a gente tem na nossa cabeça.
Cremogema: A banda se envolve em algum tipo de oficina para ensinar como o povo da comunidade vai trabalhar com essa rádio ou como eles vão realizar as matérias?
Cannibal: Na própria rádio comunitária a gente faz oficinas. Nós organizamos oficinas e convidamos toda a rapazeada. Tudo é aberto. Na verdade a oficina não é só para a comunidade “Alto José do Pinho”, é para todo mundo. É até uma coisa surreal de se falar, mas a maioria das pessoas que fazem as oficinas são as pessoas de fora da comunidade. Até porque a gente tem um intercâmbio muito grande com outros lugares. A gente convida o pessoal de fora pra falar sobre os que eles fazem pra gente também pegar experiência.
Cremogema: E como a banda se comporta em relação ao fator “drogas”? Sabe-se que nas favelas e morros as drogas são um fator que está presente.
Celo Brown: É problemático. Eu acho que essa questão começa em casa, tudo vem da base. A gente acredita muito nisso, tudo vem da educação principal. O núcleo familiar que dá base para o guri não estar envolvido nesse universo. Dentro ou fora da periferia, se você tem a cabeça vazia isso acaba se tornando a “casa do diabo”. A gente acredita muito nisso, é uma problemática gigantesca, uma coisa muito da base, da formação mesmo do cidadão. Isso é um problema também muito político.
Cremogema: Vocês pensam em uma forma de reabilitação, de tirar esse cidadão desse rumo e colocar ele na comunidade trabalhando socialmente junto com vocês ou coisa do tipo?
Celo Brown: Não abraçando a causa de que a gente vai salvar alguém ou tirar alguém desse caminho. Mas eu acho que dando uma outra oportunidade talvez seja o caminho. Mostrar pra eles que há outros caminhos. Essa é a nossa função.
Cremogema: Dos shows da banda, qual você destaca? um dentro do Nordeste e um fora do Nordeste.
Celo Brown: No nordeste teve o Rec Beat no ano passado que foi show de bola. E fora teve o nosso último show agora no Acre que foi show de bola.
Luís Felipe: Valeu pela entrevista, pessoal, bom show pra vocês e até a próxima.
Cremogema: Façam um show , pois toda galera espera vocês.
Contato:
www.devotos.com.br
www.myspace.com/oficialdevotos