No passado fim de semana de 8 a 10 de novembro, decorreu mais uma edição do AMPLIFEST no HARDCLUB, cortesia de AMPLIFICASOM, e contou com um cartaz deslumbrante que ia desde o neo-folk de CINDER WELL, à violência de LLNN, passando ainda pela deusa da negritude CHELSEA WOLFE, e muitos outros excelentes nomes.
Depois do dia 0 que contou com nomes como VELHO HOMEM no mercado do Bolhão, OKKYUNG LEE em Serralves, uma listening session de THE BODY, JOHN CXNNOR e uma performance do DJ NO JOY no FERRO BAR, e um longo dia 1 com 10 nomes da música alternativa e extrema que encheu os corações de todos os presentes, independentemente da sua nacionalidade, cor, língua, etc, estamos agora prestes a arrancar o segundo e último dia do festival. As atuações do dia ainda não tinham começado, e o sentimento de saudade já se começava a sentir pois o AMPLIFEST consegue marcar os nossos corações e criar memórias e momentos inesquecíveis.
Embora os concertos só comecem as 13h30, por volta do meio dia já existia muito movimento no HARD CLUB. Pessoal a comer, a ver e comprar merch e a conectar-se com antigas ou novas amizades.
O segundo dia contava com um alinhamento, para muitos, ainda mais forte do que no dia anterior. E embora o cansaço já se sentisse, era impossível saltar qualquer um dos concertos ou sair a meio. Todos os nomes que estavam pela frente neste segundo dia eram, no mínimo, curiosos: como será a atuação de THE BODY com DIS FIG? MARY JANE DUNPHE, como se irá apresentar em palco? Depois do último álbum lançado por ORANSSI PAZUZU que é, no mínimo, estranho, como será a interpretação do mesmo ao vivo? A curiosidade era muita!
INTER ARMA- Büro Stage
Relembro que após ZOMBIE cancelarem a sua atuação nesta edição do AMPLIFEST, a AMPLIFICASOM prometeu uma confirmação estrondosa que foram os INTER ARMA. Mal o nome foi divulgado, a promessa já havia ter sido comprida. Mas depois desta atuação, se havia gente com dúvidas, ficaram certamente esclarecidas!
Ainda antes de subirem ao palco, uma música jazz tocava na sala e a ansiedade crescia. E depois de um shot para aquecer, os INTER ARMA entraram com uma castanhada frenética de dissonância progressiva e death, bem típica deles, como que avisar o que aí vinha, sempre super energéticos. Estranheza e técnica eram os elementos que faziam parte desta equação.
As melodias criadas eram sempre desconcertantes. Mudanças repentinas para melodias nostálgicas mas intensas, criando uma atmosfera desesperante e ofegante. Nunca deixando o público descansar psicologicamente, e com muita importância da técnica do baterista T.J.Childers para criar esse efeito.
E é na terceira música do alinhamento que vem um riff de evocar o demónio mais negro existente. Cheio de groove lento, autêntico Death Doom, fazia até lembrar Morbid Angel. A cada música que passa, o vocalista Mike Paparo fica mais endiabrado e os seus olhos expeliam raiva, verdadeiros crazy eyes. Uma curiosidade que possa ter passado despercebida, é o facto do baterista tocar com as baquetas ao contrário talvez para o som sair mais forte ou até mesmo para partirem com mais dificuldade de tamanha violência com que tocava.
O grupo apresentava ainda variantes com ritmos quase tribais. E de repente, uma passagem para uma balada prog rock Pink Floydiana. Depois da porrada inicial, um momento emocional mas igualmente intenso, que enorme talento deste americanos, que, tudo o que fazem, fazem com qualidade e intensidade. Mas não deu tempo para ilusões pois rapidamente voltamos de novo a ritmos mais rápido com um post sludge cortante.
E com esta breve síntese do que ali se passou, já deu para entender a palete de diversos estilos bem misturados dos INTER ARMA. Mesmo com tanto peso e selvageria, conseguiram levar-nos num êxtase como se actuassem em campos psicadélicos. Não poderia haver melhor abertura do dia 3 do AMPLIFEST. Que enorme atuação!
MENACE RUINE- Dois Corvos Stage
Os canadianos MENACE RUINE tinham a tarefa difícil de dar seguimento ao que foi uma performance estrondosa dos INTER ARMA. Mas como já é habitual neste festival, não interessa quem tocou antes, quem toca depois, qual o estilo musical, se é violento, se é lento… Não interessa nada disso pois o grupo que atua a seguir é sempre surpreendente, é sempre criativo, é sempre marcante e supera sempre as expectativas. Os MENACE RUINE foram um dos melhores grupo nesses aspetos.
Infelizmente, nem tudo correu bem nesta atuação pois foi o primeiro (e único) concerto a arrancar com ligeiro atraso devido a problemas técnicos com um dos equipamentos da banda. No entanto, não foi necessário reduzir no alinhamento pois a margem de 15 minutos entre concertos permitiu flexibilizar. Mais uma vez, parece estar tudo pensado.
Assim que a música começa, todos os nossos sentidos põem-se sem sentido, pois a percepção do que se está ouvir não é simples. Apesar de os elementos utilizados pelos MENACE RUINE não serem propriamente os mais estranhos, a maneira como as músicas são construídas tornam-se num todo pouco ortodoxo, e apesar de momento belos, são sempre perturbadores e com uma dicotomia enorme. Para alimentar ainda mais isso, algumas quebras rítmicas ainda tornam tudo mais surpreendente. Aproximações mais palpáveis a cenários apocalípticos também existiam em alguns dos temas, onde o noise industrial sobressaiu.
Este grupo considera-se drone folk e concordo em parte mas acho muito difícil caracteriza-los estilisticamente. Será avant-garde? Será drone? Será noise? Será black metal? Na minha opinião, é simplesmente MENACE RUINE. Criaram algo novo que lhes é muito próprio, livre de caracterizações e de regras.
A simplicidade do duo é contrária à complexidade emocional das suas composições. Músicas tão ambientais e paisagísticas, mas ao mesmo tempo tão apocalípticas e distantes, como ecos de uma mistura de um passado nostálgico e um futuro desesperante. Música para contemplar de olhos fechados: abstrato e surreal ao mesmo tempo! Não se pense que não houve variedade paisagística ou marasmo musical, tudo é bem planeado e com variantes sonoras tornando tudo atrativo. Tivemos ainda oportunidade de contemplar momentos ritualísticos com S. de La Moth na percussão. A capacidade do mesmo de tocar diferentes instrumentos ao mesmo tempos, com ritmos diferentes e ainda com alterações de ritmos a meio é deslumbrante. Fez até lembrar o enorme Ray Manzarek (teclista de The Doors). S. de La Moth realmente conseguia dividir o cérebro em dois ou mais ao mesmo tempo. Impressionante.
Uma atuação que começou um pouco tímida e contraída, principalmente por parte de Geneviève, mas que ao longo do tempo os elementos se foram soltando e já parecia estarem em casa. A vocalista tem um timbre bastante único, diria marcante, impossível de esquecer, pois entra nos na cabeça e persegue-nos no bom sentido.
Na última música, dão-nos um golpe final para um estado de nirvana onde abandonamos a forma física, e ao som de uma melodia celestial entramos no cosmos enquanto vemos a terra a definhar como o ser moribundo que é a espécie humana. Inexplicável, uma experiência para a vida.
Para quem não conhecia foi certamente uma enorme surpresa agradável. Para quem conhecia e nunca tinha visto ao vivo, não tenho qualquer dúvida que seria uma das bandas mais ansiadas. Atuação que ficou no meu top 3 de AMPLIFEST 2024.
SPURV- Büro Stage
E depois da estranheza e negritude de MENACE RUINE, nada melhor que uma viagem emocional com os Noruegueses SPURV naquilo que iria ser a sua estreia em Portugal.
Este sexteto trouxe-nos um post rock instrumental que nos fez viajar pelas paisagens montanhosas da Noruega, numa viagem tranquila e harmoniosa, conduzida a uma velocidade cruzeiro mas com muitos momentos de enorme intensidade emocional como que ao atingir os belíssimos destinos a que nos submetemos.
Em termos estilísticos o que surpreende mais nos SPURV são a grande qualidade de criação de ambientes calmos e a forma como juntando trompetes, xilofones e até cordas meio country, é criada uma equação superlativa de beleza natural. Nunca uma paisagem foi tão bela como na mente deste sexteto que nos transportou para a sua visão. É como estar sentado no pico de uma montanha a ver e ouvir o que a natureza nos dá. Lindo! Sensações reconfortantes e até calorosas para a alma de um mero humano.
Alguns dos temas de um modo geral arrancam de uma forma muito leve, despertando algo emocional e nostálgico em nós. Com o decorrer da música, vão-se adicionando mais elementos, mais complexidade, mais instrumentos até chegar a uma fase de clímax ou auge musical, onde a música já subiu a um nível que fica impossível não balançar ao som da mesma. São muito bons nesta construção de crescendos , e não se antecipam antes do tempo, não têm pressa. Fazem-no com profissionalismo e calma e o resultado é brilhante: uma música com todas as etapas necessárias para ser uma grande música.
É um concerto que dá gosto ouvir mas também observar pois os seis elementos da banda realmente vivem aquilo que compõem e apresentam, e isso reflete-se na sua atuação. Que energia e que emoção que passam para o público. A felicidade que vivem enquanto tocam é contagiante. Tantos sorrisos, tantos saltos, nunca estavam parados. É algo mesmo indescritível, só visto! Portanto a quem tiver oportunidade de ver estes senhores, aconselho vivamente a não a perderem!
O frontman, em certo ponto do concerto referiu “We didn’t knew what to expect playing here for the first time. But it’s being beyond anything, so heart warming, thank you!“. E não tenho qualquer dúvida que saíram deste festival de coração cheio e com vontade de voltar a Portugal, pois o AMPLIFEST tem esse hábito: todas a bandas que cá passam apaixonam se pelo sítio, pela cidade, pelo público, pela organização e querem voltar.
Terminaram com um tema mais pesado, com um riff bem marcante, perfeito para esgotar o resto da energia que ainda podia existir por parte dos presentes. Este grupo, certamente ficará no meu radar.
MARY JANE DUNPHE- Dois Corvos Stage
A artista americana, de Nova York, de música alternativa, que também é poetiza, performer e vídeo artist, integrava neste cartaz do AMPLIFEST como sendo um daqueles grupos que promete marcar pela diferença nesta edição. O público também ansiava por esta atuação, provando mais uma vez a diversidade e a visão aberta que têm. A prova disso, foi a sala praticamente cheia ainda antes da hora da atuação.
A primeira vibe que senti foi à Kate Bush, tanto no corpo da música como no timbre de Mary Jane. Mas à medida que o concerto foi avançando, fomos viajando para algo com várias influências, extremamente criativo e que misturava muita coisa diferente.
A cada música, algo novo acontecia. Quando Mary larga a guitarra, ainda no início do concerto, a sua vertente de performer floresce. Danças contemporâneas pelo meio, gestos, movimentos, tudo alinhado com tamanha criatividade.
Esforçando-me para caracterizar o que Mary Jane faz, diria que vai de um dream pop mais angular, eletrónica dançável poli-ritmada e monocromática, com composições no limiar do breakdown.
É mais do que música, é uma simbiose de arte em todas as formas. Nota se que a Mary Jane cria uma persona para o palco em que o nível artístico é levado ao extremo. Todos os detalhes são pensados para expressar emoções e sentimentos.
AMPLITALK com MENACE RUINE
Durante a atuação de Mary Jane Dunphe, existiu também uma Amplitalk, desta vez com os canadianos MENACE RUINE, patrocinado pela See Tickets. Nesta conversa falou-se sobre os álbuns da carreira dos MENACE RUINE, do que vem para a frente, das suas influências dos artistas, entre muitas outras curiosidades.
Houve ainda espaço para perguntas do público que não se deixou afetar com qualquer vergonha, tornando esta conversa super familiar e interativa.
Esta iniciativa é de grande valor para o AMPLIFEST. Consegue marcar pela diferença e dar oportunidade aos fãs de conhecerem um pouco mais sobre as bandas que seguem e apreciam. Que se mantenha para futuras edições!
THE BODY AND DIS FIG- Büro Stage
Chegou a hora de assistir a uma colaboração que só poderia ter corrido bem: THE BODY e DIS FIG.
Começando por DIS FIG, este é um projeto a solo de Felicia Chen, uma norte-americana que absorve o que de melhor se faz no pop, música eletrónica, noise e metal, e expressa-o na forma de um pequeno monstro que tem tanto de frágil como de perigoso. Por outro lado, os THE BODY são monstro gigante, sem forma definida, não se sabe onde acaba o seu corpo e começam as suas tenebrosas sombras, por isso têm uma capacidade natural para absorver as suas vítimas sem que as mesmas deem por isso.
Ambos os grupos fizeram uma colaboração que deu origem a músicas que misturam o que de melhor fazem os dois conjuntos, mais perigosidade disfarçada na suave voz de Felicia Chen, mais experimentalismo mas o buraco a ir mais fundos e ser mais sombrio quando os The Body mostram as suas armas.
DIS FIG apresentou-se com uma uma medusa, transformando em pedra quem a observava e petrificou a sala toda. Como se estivesse possuída por um ser superior a todos nós. Até hoje ainda não tinha visto ninguém que pudesse considerar “animal de palco” no mundo feminino, mas agora já encontrei! É definitivamente Felicia Chen que interpreta uma personagem e foca no contacto visual direto com os espectadores, não deixando ninguém ficar indiferente, expressa tal dor, tal raiva, esperneia e contorce, agarra os cabelos, atira-se para o chão… O sentimento que quer passar com a sua letra é bem claro.
Diria que existiu uma bipolaridade tanto vocal como performativas de DIS FIG, sobre uma parede de ruído que dá ansiedade. Sempre com o vocalista dos THE BODY a dar um cunho de desespero com os seus vocais no limiar da loucura quase á DSBM. DIS FIG como que se estivesse com surtos psicóticos, uma besta selvagem e perigosa.
Esta experiência tem que ser contada em primeira pessoa: é como estares dentro do teu próprio corpo com todos os teus medos e ansiedades, cada vez mais claustrofóbico e simplesmente não consegues sair dali. Estás imóvel. Foi esse o nível de adição deste espetáculo, o ser humano no seu melhor ou talvez pior. Tudo que possa escrever é pouco para o que se sentiu naquela sala.
Nesta atuação, DIS FIG e THE BODY fundiram-se num mostro sem forma. Nunca vi nada igual…
DECLINE AND FALL- Dois corvos stage
No panorama nacional, surge um novo nome que junta dois músicos particularmente importantes – Armando Teixeira, fundador dos Bizarra Locomotiva e Hugo Santos, o imponente frontman dos Process Of Guilt, que se destacam no mundo do doom/sludge/industrial. A cargo das letras deste projeto, está o jornalista e escritor Ricardo S. Amorim. A estreia em palco esteve marcada, precisamente para este concerto, no AMPLIFEST.
O resultado desta fusão foi algo como se os Moonspell tocassem darkwave. Um ambiente tenebre, mas requintado, cheio de envolvência sinistra como se a morte se aproxima-se lentamente, como se de uma cobra se tratasse, enrolando-se no pescoço do espectador.
Com as suas guitarras suaves e ênfase nos sintetizadores, criam um ambiente calmo, ligeiro, mas tão agradável que dá vontade de fechar os olhos e embalar ao som dos seus temas. Mas não se enganem, não estamos a falar de nada monótono pois contávamos com momentos contemplativos, partes um pouco dançáveis e aumentos e descidas de intensidade. Com estes elementos juntos numa amálgama, colocaram-nos dentro de quatro paredes desta sala escura, numa atmosfera densa e perturbadora, com uma janela entreaberta para os cantos mais obscuros da mente humana.
Um grupo formado por três elementos de diferentes realidades, com gostos e influências comuns só poderia dar origem a algo tão criativo e belo como DECLINE AND FALL. Foi a sua estreia nos palcos e não poderia ter sido em melhor local se não no AMPLIFEST.
CHELSEA WOLFE- Büro stage
E chegou, possivelmente o ponto mais alto do festival. A 30 minutos do arranque do concerto, já havia gente a “acampar” na sala Büro para assistir o mais perto possível à atuação da rainha das trevas, CHELSEA WOLFE. E estamos a falar de mais um regresso aos palcos do AMPLIFEST, tendo tocado em 2013, ainda no ciclo de Pain is Beauty. Mas já aí, estava destinada ao trono onde se encontra agora.
Após essa passagem, já criou obras como Abyss (2015), Hiss Spun (2017) e Birth Of Violence (2019), sendo o mais recente trabalho She Reaches Out to She Reaches Out to She (2024) uma obra impactante, após uma ausência de cinco anos, que expande a já vasta palete de Chelsea, incorporando peças eletrónicas. A cada passo dado pela americana, é como se a musica americana junta-se mais e mais ingredientes no furacão que é a sua arte, obscuro, para subir mais um nível na sua aventura discográfica.
Chelsea é uma artista que se inspira na maior diversidade de estilos musicais e, com essa inspiração, cria obras imensamente variadas mas sempre únicas de si própria. Artista que se inspira em muitas origens e que também inspira muitos/as outros/as artistas.
O concerto arrancou com Whispers In The Echo Chamber, do mais recente trabalho que conta com uma introdução trip hop e a sua voz angelical, suave, mas de certa forma demoníaca, que se entranha no nosso cérebro e não larga mais. Começa o concerto com a leveza da introdução deste tema mas que termina com muito peso e distorção.
Ainda do mais recente álbum, Everything Turns Blue foi o segundo tema do alinhamento, uma faixa de muita partilha pessoal, que fala sobre como nos encontrarmos a nós mesmos após vários anos numa situação tóxica. Neste tema dark pop angular e sofisticado, existia uma ambiência fantástica criada pelas luzes em palco em tons de azul. Chelsea apresenta uma voz ondulante que nos deixa emaranhados nos seus encantos, como o canto de uma sereia mesmo sabendo que vai ter um final agridoce. Com movimentos em palco sempre com altivez e de forma harmoniosa como se de uma brisa se tratasse.
Antes de arrancar para o terceiro tema, os gritos e palmas eram altos e duradouros, como ainda não se tinha visto nesta edição do AMPLIFEST. Embora Chelsea necessite de algum distanciamento com o público para criar o ambiente doloroso e gélido, teve de fazer aqui uma pausa para agradecer ao público pelo carinho e responder a um “I Love You” que saiu do público bem alto.
Antes de voltarmos algumas obras atrás, House Of Self-Undoing e Tunnel Lights foram interpretados, até regressarmos a Hiss Spun (2017), o álbum mais doom/sludge/post-metal/gótico da artista, com o tema 16 Psyche. Aqui Chelsea pega na sua guitarra e o ambiente torna-se mais pesado, com sonoridades de guitarra bem sludge e dark. A guitarra de Wolfe lança um rugido hipnagógico enquanto se expõe: “She said, I’d save you, but I can’t…“. Uma faixa que fala de uma possessão e a impossibilidade de fugir da mesma. Dolorosamente belo. E ainda mais belo vê-la ser interpretada ao vivo.
Os três temas seguintes viajam por diferentes facetas da criatividade da artista. After the Fall, do álbum Abyss (2015), um tema mais leve mas ainda com a vertente gótica e doom, mas numa realidade mais dark wave e até folk. Começa lento e taciturno antes de explodir num refrão empolgante e que ainda passa por uma batida minimal house. Uma música que parece descrever a frustração de estar preso num sonho e não conseguir acordar. Arrepiante.
The Culling e The Mother Road de Hiss Spun (2017) e Birth of Violence (2019) são os temas que se seguem antes de viajarmos para anos mais longínquos com os temas The Mother Road e Flatlands, do álbum composto por músicas acústicas Unknown Rooms: A Collection of Acoustic Songs (2012). Aqui o caráter distintivo da sua voz angelical, doce, bela, é intensificado e emerge como sendo impressionante. Transmite uma fragilidade perturbadora, como uma criatura ferida à espreita. Apenas Chelsea, a sua guitarra e a sua voz. Que momentos belos se passaram ao som destes temas, que emocionante que foi.
Alguns detalhes que não podem passar despercebidos são o facto de Chelsea beber de um cálice, utilizar um pêndulo quase que para nos hipnotizar e o fantástico trabalho de luzes. Esta luz foi aumentando no decorrer do concerto, começando por nem permitir observar o seu rosto, mas no final já era possível visualizar as suas expressões. Estava tudo de olhos postos em cada movimento de Chelsea num ambiente de difícil visão. Cada vislumbre da sua silhueta era como uma fotografia mental a reter.
Ainda num horizonte temporal mais longínquo, Feral Love de Pain is Beauty (2013), permitiram aos amplifesters mais assíduos recordarem a era deste álbum, sendo que foi interpretado na sua anterior passagem pelo AMPLIFEST em 2013, antes de regressarmos a 2024 com Salt, Unseen World, Eyes Like Nightside, Place in the Sun, Dusk e The Liminal.
A certo momento, todos os elementos saem do palco. Quando Chelsea regressa, não está sozinha. Emma Ruth Rundle aparece descalça, em tom tímido mas os fãs não dão hipótese e toda a gente grita “Emma”. É a vez de Anhedonia entrar em ação e aqui já estamos perante um duo que mistura duas vozes incríveis. Uma faixa com enorme peso emocional, que retrata a incapacidade de sentir prazer em qualquer coisa que fazemos. Provavelmente, um dos sintomas mais tristes da depressão. A emoção é apaixonante em ambas as vozes e os corações do público ficam bem apertados perante tal atuação.
Carrion Flowers de Abyss (2015) termina este concerto que foi absolutamente inesquecível. Depois de mais de uma década afastada dos palcos portugueses, foi tão bom receber mais uma vez a deusa da negritude. Que momento, que concerto, que experiência. Não há palavras para explicar o sentimento vivido durante aquela hora e meia. Depois deste concerto, nunca mais serei a mesma pessoa. Obrigada do fundo do coração AMPLIFEST!
Setlist: 1- Whispers in the Echo Chamber ; 2- Everything Turns Blue; 3- House of Self-Undoing; 4- Tunnel Lights; 5- 16 Psyche; 6- After the Fall; 7- The Culling; 8- The Mother Road; 9- Flatlands; 10- Feral Love; 11- Salt; 12- Unseen World; 13- Eyes Like Nightsade; 14- Place in the Sun; 15- Dusk; 16- The Liminal; 17- Ahedonia; 18- Carrion Flowers
YOO DOO RIGHT- Dois Corvos Stage
Depois do momento de maior intensidade do AMPLIFEST 2024, com o concerto de CHELSEA WOLFE, os YOU DOO RIGHT tinham a difícil tarefa de nos tirar do poço fundo de dor emocional em que Chelsea nos deixou.
Este trio apresenta um monumento sonoro que vai buscar o feeling do shoegaze, algumas nuances do post-rock e muitos mais pozinhos de muitas outras realidades. Ainda são um dos segredos mais bem guardados da cena alternativa internacional mas após esta atuação no AMPLIFEST, pelo menos em Portugal, nunca mais irão passar despercebidos.
Este trio apresenta momentos de puro rock energético contrabalanceado com outras fases mais progressivas onde os teclados tomam as rédeas dos acontecimentos. De um modo geral, bastante upbeat e cheio de good vibes. Trata-se de mais uma banda instrumental a pisar os palcos do festival, demonstrando que tudo é uma forma de expressão e nem sempre são necessárias palavras. Neste caso melodias e ritmos valem mais que mil palavras.
Individualmente, têm um baterista bastante dinâmico que cria precursões que tornam a sua música por vezes dançável e hipnotizante, a querer tomar conta do corpo de cada um dos espetadores. Usam ainda a repetição para criar um efeito de espiral dançante, transformando aquele recinto num ritual transcendental.
Capturam uma sensação de impulso não linear através da construção de um mundo sonoro, que evoca a imagem de um pasto alto numa montanha envolta em neblina. Inspiram-se na paciência, na mercantilização da arte, na IA e na música/arte algorítmica, bem como em influências musicais que vão desde Wes Montgomery até Neurosis. Criam algo para crescer e celebrar a força motriz do amor incondicional por todas as coisas vivas.
Eram um dos must see do AMPLIFEST e justificaram bem esse “rótulo” com esta atuação.
ORANSSI PAZUZU- Büro stage
A apenas duas bandas do final da edição do AMPLIFEST 2024, chegou a hora dos enormes ORANSSI PAZUZU deixarem o seu rasto de destruição no HARD CLUB e encerrar as atuações no palco Büro.
Os finlandeses estiveram presentes no AMPLIFEST 2022 mas existiam bons motivos para chamar novamente este grupo após o lançamento de Muuntautuja em Outubro deste ano. Uma obra, no mínimo estranha, mas tão piscadélica e abstrata que nos retém por horas e nos deixa completamente desnorteados.
Ouvir ORANSSI é o mesmo que perdermo-nos entre as estrelas, vaguearmos pelo vazio cósmico, sem ter qualquer vontade de voltar. Com os seus sons sinistros, prepararam o público para um demónio laranja. Isto pois, tal como a mitologia Sumeria diz respeito, Pazuzu é o rei dos demónios que traz os ventos da destruição e da miséria. Então como seria um Pazuzu laranja? (Oranssi significa “laranja”). Seria um demónio mais psicadélico, não menos terrorífico, pois o pior terror é o psicológico. Não haveria melhor forma de nomear esta banda.
Durante os primeiros segundos de concerto, parece que tudo acontece muito depressa, com muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, deixando-nos completamente perdidos. O psicodelismo leva-nos a um espectro onde um cosmos é todo o espaço demoníaco. Até o ar que respiramos se torna estranho. A sua música é completamente desfragmentada e tornada num turbilhão de camadas a velocidades ímpares cheias de reverb e eco. Momentos mais contemplativos são como jams de experimentação abstrata e até um pouco jazzística. Linhas de baixo poderosíssimas, funcionando como fio condutor naquele vortex psicadélico.
Aos poucos, os membros da banda deixam-se levar mais pelas músicas e o público já está ao rubro com a viagem mais psicadélica e creepy do festival, e essa tarefa já era bastante dificil de realizar. Mas não haveriam dúvidas que, no meio de tanta estranheza que este festival oferece, o mais estranho estaria no fim e seria com estes finlandeses.
O que apresentam, é um novo conceito de música: black metal muito diluído no mundo de ORANSSI PAZUZU, em ambientes que só eles conseguem criar. E isto tem-se vindo a intensificar de obra para obra, desde a sua origem, em 2007. Para termos uma noção geral da complexidade deste grupo e das suas composições, menciono que estamos perante cinco homens, duas guitarras um baixo, uma bateria e 3 ou mais teclados (nem foi possível contar bem). Cada um dos elementos faz muitas coisas diferentes e ao mesmo tempo tornando a coisa ainda mais estranha de ouvir e difícil de observar. Mas é impressionante como tudo junto funciona tão bem!
Foco em Niko Lehdontie (guitarra, teclados e samples) que parecía possuído em palco. A música entranhava-se nele e dominava-o completamente. Nada o conseguia parar, nem ele tentava que isso acontecesse. Era viver aquilo que estava a tocar e a ouvir por completo, sem filtros e sem correntes.
O vocalista principal tinha um efeito mecanizado muito estranho, a um nivel alienista. Como se a música The End dos The Doors fosse agora uma enorme viagem por uma dimensão de matéria negra. Um “bad trip” no bom sentido. Juntando a isso, o facto dos seus temas serem cantados em finlandês acaba por reforçar esse efeito alienista para um português.
Se há coisa que estes finlandeses são bons, é em criar essas sensações de “trips“, neste caso, de “wierd trips“, pois o que eles fazem é tudo menos simples e de fácil audição mas nem por isso menos engrandecedor.
E tal como o próprio nome da banda indica- Demónio Laranja-, apresentou-se como isso mesmo, um demónio que nos arrasta para as profundezas de um buraco negro enquanto estas sobre efeito de ácidos. Estivemos perante uma viagem caótica, complexa, claustrofóbica onde a recompensa não foi imediata mas foi garantida, pois o ouvinte foi levado a visitar um universo onde as paisagens e as sensações são magnificas e sobretudo, únicas.
Os ORANSSI são como um bom filme de terror, a inquietação durante o desvendar do enredo é avassaladora, mas no fim é gratificante e ficamos com vontade de respirar fundo e voltar a ver. Foi mais um excelente regresso a casa nesta edição do AMPLIFEST e eu cá espero que não seja o último…
EIHWAR- Dois Corvos Stage
A cultura Viking sempre foi alvo de grande fascínio, mas nos últimos anos essa tendência parece ter-se universalizado ainda mais, com o sucesso global de verdadeiros entendidos do assunto como os Wardruna e os Heilung. A cultura Viking continua a espalhar-se um pouco pelos géneros mais improváveis da música, como se cá tivessem deixado o seu espírito conquistador.
Os EIHWAR surgem como uma pista de dança Viking, que mantém toda a brutalidade e intensidade, mas incorporando um elemento eletrónico. Este duo composto por Asrunn e Mark, com as suas vestimentas que se situam entre lutadores Viking e guerreiros medievais criaram algo novo e tão original, que cativaram a atenção dos ouvintes muito rapidamente.
Cantado num dialeto Viking, misturam instrumentos arcaicos com batidas eletrónicas, juntando passagens ambientais e momentos dançantes. A voz de Asrunn é perfeita para aquilo que criaram, tão bela e que nos leva diretamente para esse tempo da nossa história e era notável o prazer com que cantava. Os gritos de ambos os elementos, esses eram de um verdadeiro guerreiro Viking a preparar-se para a batalha, a batalha até à morte.
Muitas bandas exploram os mundos pagão e nórdico nos últimos anos à procura de sons atmosféricos, acústicos e rituais com grande seriedade. Mas este não foi o caminho que a EIHWAR escolheu. O seu objetivo foi trazer um pouco de diversão e o máximo de caos possível durante o concerto, provocando o efeito transe. Fazem uma música neo-viking festiva e poderosa cuja força primordial é baseada no techno, misturadas com vocais Viking e sons tradicionais nórdicos. Comos se a eletrónica fosse o “novo aço” para os guerreiros modernos.
Que excelente encerramento desta edição do AMPLIFEST. Os EIHWAR conseguiram resgatar a energia que já tinha sido esgotada após três dias de música tão longos, com a sua pujança e enorme capacidade de chamar pelo público. Parabéns EIWHAR! Nesta estreia em Portugal, conquistaram todos os presentes naquela sala e com toda a certeza acabaram de expandir a rede de fãs em terras lusas. Aguardamos ansiosamente pelo regresso!
Quanto ao AMPLIFEST e AMPLIFICASOM, não há palavras que consigam explicar o que aconteceu nestes dias. Com este cartaz, com este ambiente, com este conforto, a única coisa que consegue superar a saudade que fica após o seu final, é arrancar já a contagem decrescente para a próxima edição. Sonhos de ver bandas que dificilmente viriam a Portugal se não fosse esta promotora, foram finalmente cumpridos e certamente continuarão a ser nas próximas edições.
Por isso, vamos agora processar tudo o que se passou e estar atentos, porque em 2025, lá estaremos novamente.
Obrigada AMPLIFEST e AMPLIFICASOM. Até para o ano!