Desde sua formação em 2017, em Recife-PE, O Trovador vem se destacando no cenário nacional por apostar em um Death Metal Old School, cru, direto e com letras integralmente em português. O grupo atualmente é composto por Flavinho Pereira (vocais), Guilherme Trovador (guitarras), Jefferson Figueiroa (baixo) e Davi Peste (bateria).
Inspirado por bandas clássicas dos anos 90 como Cannibal Corpse, a banda nasceu com a proposta clara de resgatar a essência mais brutal e primitiva do gênero, trazendo à tona realidades sombrias e perturbadoras que permeiam o cotidiano brasileiro. A ideia surgiu do vocalista Flavinho Pereira, que percebeu ainda na adolescência como muitos jovens headbangers enfrentavam barreiras linguísticas para compreender a profundidade lírica do Death Metal internacional. A banda decidiu, então, quebrar essa barreira, utilizando o português para conectar o público diretamente à mensagem visceral do estilo.
O primeiro single do Trovador, “Necropedofilia” (2017), imediatamente gerou impacto. Inspirado nos crimes do infame “Vampiro de Niterói”, a faixa trouxe de volta o clima chocante e direto característico do Death Metal clássico.
Em 2025, a banda lançou seu novo single “Diabetes Mellitus”, disponível desde 5 de maio em todas as plataformas digitais. Desta vez, o grupo mergulhou em um tema de saúde pública pouco comum no universo do metal extremo: as complicações e o sofrimento causados pelo pé diabético. Nutricionista por formação, Flavinho Pereira viu de perto as consequências devastadoras dessa doença, experiência que se traduziu em uma letra visceral e educativa ao mesmo tempo.
Atualmente, a banda trabalha em um novo EP intitulado “Voltando dos Mortos”, que abordará doenças crônicas com a mesma brutalidade e crueza lírica que já se tornaram sua marca registrada.
O Cultura em Peso conversou com Flavinho Pereira, vocalista da banda Trovador, sobre o novo single “Diabetes Mellitus” e as motivações por trás das letras viscerais do grupo pernambucano. Confira a entrevista:
Cultura em Peso: Desde 2017, o Trovador vem resgatando as raízes do Death Metal clássico com letras que escancaram o lado mais sombrio da realidade brasileira. Como surgiu a ideia de fundar a banda com essa proposta tão direta e provocadora?
Flavinho Pereira: O Death Metal tem como proposta lírica e temática escrever sobre crueldades e fragilidades humanas que nenhum outro subgênero ousa falar. Não é bonito falar de morte, estupro ou violência, mas são fatos que estão presentes no cotidiano da sociedade. A arte vem com intuito de descrever, narrar, refletir. O status quo considera como arte apenas aquilo que é belo. O Death Metal vai na contramão e isso pode provocar aqueles que possuem limitações culturais e acreditam que apenas a arte bonita pode ser considerada uma expressão cultural.
Na idade média existiam os Trovadores: poetas e compositores que escreveram sobre amor, natureza… e escárnio. A proposta da banda surgiu da ideia de resgatar a essência do Death Metal com letras em português.
Na minha adolescência, durante o ensino médio, eu fiquei impressionado com as letras de “I Cum Blood” e “Stripped, Raped and Strangled” do Cannibal Corpse. Não apenas pela violência, mas porque aquilo era poético. Foi quando pude perceber que o Death Metal não era apenas palavras sobre morte sem sentido jogadas ao vento!
Nessa época eu tinha aproximadamente 14 anos, estudava em escola pública, não sabia falar inglês e traduzia as letras das bandas através do Google Tradutor. Alguns anos se passaram e eu comecei a escrever poesias splatter gore, que eram péssimas, por sinal. Havia uma comunidade no finado Orkut com o mesmo nome onde escrevíamos coisas do tipo. Lá, conheci o Tauan (From the Abyss; Grave Reaper), um exímio escritor que escrevia muito bem poemas autorais, que nitidamente bebia na mesma fonte que eu, as letras horrendas dos primeiros discos do Cannibal Corpse.
Eu era um adolescente de escola pública, que em meio a vulnerabilidade social, não sabia falar inglês. Anos depois, quando decidi fundar o Trovador, percebi que muitos jovens, que vivem nas mesmas condições em que eu vivia, poderiam estar deixando de aproveitar a riqueza lírica e temática do Death Metal, que vai além da sonoridade. Pensei: “E se eu montasse, talvez, a primeira banda de Death Metal do Brasil, a escrever em português, com a mesma estrutura lírica do Cannibal Corpse, descrevendo detalhes sórdidos sobre a animosidade humana como fez Augusto dos Anjos?”
Pensei: “E se eu montasse, talvez, a primeira banda de Death Metal do Brasil, a escrever em português, com a mesma estrutura lírica do Cannibal Corpse, descrevendo detalhes sórdidos sobre a animosidade humana como fez Augusto dos Anjos?”
O Trovador surgiu com a proposta de aproximar o headbanger brasileiro da essência lírica do Death Metal dos anos 90, assim como fez o Cannibal Corpse, porém, com letras em português. Percebi que muitos jovens, como eu na adolescência, deixavam de absorver a profundidade das letras por conta da barreira do idioma. O Trovador é o elo entre a sonoridade extrema e o lirismo sobre temas sensíveis, que muitas vezes, chocam até os próprios headbangers!
Cultura em Peso: O primeiro single, “Necropedofilia”, já mostrava o interesse da banda por crimes reais. Agora, com “Diabetes Mellitus”, vocês abordam um tema de saúde pública com a mesma brutalidade sonora. Qual foi a motivação para tratar de um problema como o pé diabético dentro do universo do Death Metal?
Flavinho Pereira: O título de Necropedofilia é uma homenagem a Necropedophile do Cannibal Corpse. Assim como o Cannibal Corpse chocou nos anos 90 com suas letras, o Trovador choca muitos brasileiros nos tempos atuais (basta olhar os comentários nos vídeos do Youtube).
Muitos headbangers, talvez devido a barreira do idioma, não imaginam o conteúdo lírico de muitas músicas que eles batem cabeça. Necropedofilia resgata exatamente a essência de descrever aquilo que sequer ousamos pensar. Mas o fato existe na nossa sociedade, e não foi o Trovador quem criou. Nós apenas narramos, assim como um filme de terror ou um documentário. Alguns headbangers, no Youtube, tiveram a ousadia de dizer que a letra é uma apologia. O Trovador surgiu exatamente com essa proposta reflexiva: nós não fizemos nada diferente do que o Death Metal sempre fez, esses headbangers apenas não tinham acesso a essa informação, provavelmente pela barreira do idioma.
Eu confesso que atualmente essa letra me choca, eu não me arrependo de tê-la escrito, mas hoje os tempos são outros, a proposta do Trovador naquela época era exatamente essa: fazer o headbanger refletir sobre aquilo que sempre existiu no Death Metal.
A expressão artística é como uma fotografia do momento em que vivemos. No “O Abominável Espetáculo”, nosso primeiro EP, a proposta era resgatar a essência lírica e temática daquilo que o Death Metal e o Goregrind escreviam. Eu sou nutricionista, acompanhei pacientes em alas cirúrgicas que sofreram com as moléstias do pé diabético. Vi feridas, senti o cheiro horrendo da necrose e ouvi muitas histórias tristes de pacientes e familiares que precisaram lidar com os desafios do diabetes. Pensei, por que não conscientizar o público do Metal Extremo sobre isso?
O Trovador sempre levantou uma bandeira política, do antifascismo. O autocuidado é política! Marighella falava sobre cuidar do corpo e da mente na luta antifascista. Por que não usar o Death Metal como uma ferramenta política de autorreflexão? “Pé diabético já ouviu falar?”, duvido você ouvir esse verso e não digitar na barra de pesquisa do Google. Se for sensível, evite ver as imagens!
Cultura em Peso: Enquanto muitas bandas de metal extremo preferem letras voltadas para fantasia ou temas fictícios, o Trovador aposta em histórias reais e perturbadoras da vida cotidiana. Como essa escolha influencia a identidade musical e a mensagem que vocês querem passar com o som da banda?
Flavinho Pereira: O nome Trovador sugere o que faziam os trovadores na idade média: escrever sobre situações reais.
Não importa se escrevemos sobre o passado, o presente ou o futuro, nossa temática sempre gira em torno de algo real, que afeta ou já afetou a humanidade. Ao contrário de muitas bandas que exploram o imaginário, o oculto ou a fantasia, nossa proposta é encarar de frente a realidade brutal que nos cerca.
Até o presente momento temos três materiais lançados: O primeiro EP, “O Abominável Espetáculo”, que aborda serial killers brasileiros. Nosso segundo material, “O Julgamento do Cadáver”, narra sobre um escândalo ocorrido na idade média envolvendo a igreja católica em um evento bizarro, onde o cadáver de um papa foi exumado para ser julgado, simbolizando a corrupção da igreja. E atualmente estamos escrevendo o EP “Voltando dos Mortos”, abordando moléstias causadas por doenças crônicas.
Cultura em Peso: As letras em português intensificam o impacto da mensagem, especialmente para o público que nem sempre compreende o inglês usado por muitas bandas do gênero. Como vocês veem o papel do idioma na experiência do ouvinte e na recepção do novo single?
Flavinho Pereira: Escrever em português é, para nós, um ato político. Acessibilidade. Sempre levantei essa bandeira. Entendo que muitas bandas optem pelo inglês para alcançar o mercado internacional, e respeito isso. Mas a proposta do Trovador é outra: queremos que o headbanger brasileiro, que muitas vezes enfrenta a barreira do idioma, compreenda cada verso, cada tema, e consequentemente, ganhando mais autonomia para criar as suas próprias reflexões, acredito que esse seja um dos principais intuitos da arte!
Em relação à experiência do público ao ouvir o nosso novo single, é muito difícil não refletir. A letra se comunica com o ouvinte de forma clara, trazendo curiosidade para versos como “Pé diabético já ouviu falar?” ou “Desbridamento, já ouviu falar?”, além de narrar um drama real em “Familiar de plantão, não consegue dormir, precisando cuidar, de você, zumbi”. A letra é embasada cientificamente, existe uma estrofe que descreve alterações fisiológicas que acontecem no diabetes: “Esquema da desgraça, glicemia alterada, falência renal, moribundo cardiopata”. Essa letra traz bastante aprendizado e reflexão acerca de fatores fisiológicos e sociais.
Enquanto à recepção do público, vai haver aqueles que gostam e aqueles que não gostam, e tá tudo bem! Fazemos esse tipo de trabalho porque gostamos, tanto liricamente quanto musicalmente, não nos importamos tanto com o gostar do público. Encontramos propósito em produzir dessa forma, atribuímos valor a isso. O público gostar é consequência, não a causa!
Cultura em Peso: O single “Diabetes Mellitus”, lançado em 5 de maio de 2025, traz uma carga lírica visceral e crua, ao mesmo tempo em que aborda um drama real vivido por milhões. Como foi o processo de composição dessa faixa, e que tipo de reação vocês esperam do público, tanto do headbanger tradicional quanto de quem talvez nunca tenha ouvido Death Metal?
Flavinho Pereira: Como pontuei, eu sou nutricionista. Atualmente tenho vivido cotidianamente essa realidade abordada na música. A arte é um importante veículo de informação e eu acredito que nada seria mais genuíno que isso. Essa letra pode trazer reflexões diferentes de acordo com a experiência de vida de cada ouvinte. De um lado, um headbanger pode ter uma maior identificação com os trechos viscerais que abordam sobre as feridas, amputações e procedimentos cirúrgicos. Do outro lado, o headbanger que pode ter sido recém diagnosticado com pré-diabetes refletindo sobre os desafios que poderá encontrar pela frente.
Eu costumo reproduzir a seguinte frase: “Death Metal é para fãs de Death Metal”, não é à toa que classificamos de metal extremo, não está acessível para a maioria. Acredito que dificilmente exista uma pessoa que não curta Metal e diga: “Ah, eu gosto apenas da música Death to Jesus do Deicide, mas eu não curto metal extremo”. Isso é impossível! E eu acho legal que se mantenha inacessível assim. Não é síndrome do underground! Já pensou se uma letra como Necropedofilia faz “sucesso nas redes” e o tribunal da internet começa emitir opiniões como apologia ou algo do tipo? Deve ser muito chato passar pelo o mesmo que o Cannibal Corpse passou nos anos 90, sofrendo processos, boicotes e precisando se justificar com frequência que eles não concordam com os personagens das músicas que abordam sobre crimes violentos, são apenas narrativas como um filme de terror ou um documentário sobre serial killers. Death Metal não é para todos, apenas para os fãs de Death Metal!
O Death Metal vai na contramão e isso pode provocar aqueles que possuem limitações culturais e acreditam que apenas a arte bonita pode ser considerada uma expressão cultural.
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