Dessa vez resolvi publicar o artigo que não foi escrito por mim e sim pelo meu amigo/irmão de Salvador, o guerreiro Paterson Franco Costa, artigo de extrema relevância para o atual momento Ucraniano e Brasileiro, onde o autor faz uma comparação de extrema precisão e visão entre os dois Países e jogo a verdade ( sobre a Ucrânia ) nas caras dos desavisados e privados de inteligência, que infestam não somente o Brasil, mas significativamente o Brasil.
Ass. Panda Reis
Sobre o autor
Paterson Franco Costa, doutorando em Tradução Intersemiótica pela UFBA, tradutor/intérprete de russo e estudioso de países do antigo bloco soviético. Autor do romance URSS 2.0 e artigos relacionados ao tema.
Foi com perplexidade que acompanhei as notícias do dia 31 de maio de 2020, primeiro quando soube que grupos “protestavam a favor do governo”, em São Paulo, e segundo, quando vi dentre os manifestantes os símbolos nacionais da Ucrânia. Ora, além da contradição que é “protestar a favor”, a primeira coisa que pensei foi: “Não bastava deturpar a bandeira do Brasil, ainda tinham que deturpar a bandeira da Ucrânia!?”. Gritavam que era preciso “ucranizar o Brasil” e eu, confuso, pensei “Ah, querem derrubar o presidente, assim como fizeram na Ucrânia? Então por que o apoiam?”.
Em um dos artigos seminais do campo da tradução intersemiótica, Aspectos linguísticos da tradução (1959), o linguista russo-estadunidense Roman Jakobson argumenta que uma pessoa só pode entender o significado de uma palavra se tiver conhecimento do objeto a que ela se refere dentro do sistema linguístico em questão. Não falamos ucraniano, logo, dificilmente entenderemos o significado dos símbolos nacionais do ponto de vista ucraniano. Mas podemos imaginar. A interpretação desses símbolos tem sido feita sempre a partir de outros sistemas linguísticos e políticos: russófono, anglófono, lusófono. Tendemos a atrelar um símbolo novo a algo que já temos no nosso imaginário, por isso, muitos só conseguem enxergar a Ucrânia relacionando-a com a Rússia, sua antiga metrópole e signo dominante. O mesmo ocorre com Belarus, o país de origem da minha esposa, e tantas outras repúblicas da extinta URSS. No contexto polarizado em que vivemos hoje, isso pode nos levar, basicamente, a duas direções extremas: direita, com neonazismo e ultranacionalismo, e esquerda, com comunismo e irredentismo russo. Qual delas se aplica à Ucrânia como um todo? Nenhuma.
A política ucraniana, assim como a de qualquer país, é um espectro. Há neonazistas e comunistas? Há, assim como aqui, mas eles são uma ínfima parte da nação, cuja maior preocupação hoje em dia, assim como a nossa, é meramente sobreviver. Precisamos então refletir sobre dois momentos da história recente em que a sobrevivência e a integridade do povo ucraniano estiveram em risco e cujas consequências nos trouxeram até aqui: segunda guerra mundial e a atual ocupação russa na Crimeia e conflito no Donbass.
Durante a Segunda Guerra, movimentos de independência em todas as repúblicas soviéticas ocupadas por nazistas seguiram a velha lógica de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, muito bem explorada por Hitler, que assim logrou batalhões de aliados, ávidos para derrotar Stalin, responsável por milhões de mortes em todo o país (cf. Grande expurgo de Stalin, GULag e Holodomor, só para citar alguns exemplos). As bandeiras usadas por esses movimentos geralmente eram as mesmas pré-soviéticas, não só a da Ucrânia, como também de Belarus, Lituânia e a própria Rússia, onde grupos nacionalistas queriam revanche após a revolução bolchevique. No romance distópico URSS 2.0, que escrevi sobre o retorno de Stalin para o centenário da revolução em 2017, a primeira reação do déspota ao ver o estandarte tricolor russo tremulando no Kremlin foi acusar de golpistas aqueles que colaboraram com Hitler e isso não foi invenção minha – essas bandeiras, incluindo a russa, ganharam esta conotação no discurso soviético. Isso parecia ter mudado com o fim da URSS, quando essas bandeiras foram retomadas por seus respectivos países, mas até hoje, como estamos presenciando, essa retórica ainda vem sendo usada de maneira oportunista.
E isso nos leva ao conflito que começou em 2014, com os protestos em Kyiv, impeachment de Yanukovitch e invasão russa. Quando figuras como as do canal Brasileirinhos se referem a “ucranizar o Brasil”, ao meu ver, isto implica em um levante popular contra o governo, como manifestantes fizeram ao literalmente jogar políticos ucranianos em lixeiras, o que o jornal britânico The Telegraph chamou de “desafio do balde de lixo” parodiando o então popular “desafio do balde de gelo”, e a Euromaidan, como ficaram conhecidas as manifestações da Praça da Independência, em Kyiv, contra o governo pró-Kremlin de Yanukovitch. Acontece que na retórica do Kremlin, quem está contra a Rússia é automaticamente fascista e a mídia russa vem investindo pesadamente em acusações, frequentemente fabricadas (fake news), sobre fascismo nas manifestações e na resistência ucraniana. Existem grupos neonazistas e neofascistas? Sim. Alguns deles usam o Tryzub, o brasão oficial do Estado ucraniano? Sim. Unidades policiais de contra-terrorismo em países como o Reino Unido (Signs and Symbols Guidance Document, junho de 2019) chegaram a incluí-lo em suas listas, juntamente com símbolos antifascistas, de organizações de proteção aos animais e ao meio ambiente, como Peta e Greenpeace, do movimento vegano e da campanha para o desarmamento nuclear, também conhecido como Símbolo da Paz (☮). Nesses e outros casos o governo ucraniano manifestou sua indignação, a exemplo do embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, quando afirmou na CNN que tanto símbolos fascistas quanto comunistas são proibidos naquele país, que sofreu tanto com soviéticos quanto com nazistas, e que o Tryzub, bem como a bandeira oficial – azul e amarela – quanto a histórica – rubro-negra – são símbolos que antecedem tudo isso.
Podemos concluir então que o termo “ucranização” e a expressão “ucranizar o Brasil” são interpretações deturpadas sobre um povo que luta contra a Rússia e por isso, na cabeça de alguns brasileiros, é de extrema-direita, agregando-se aí o fato de que existem alguns grupos ultranacionalistas de inspiração nazi-fascista no país (só para constar, a Rússia há muito deixou de ser comunista e seu governo apoia líderes da extrema direita no mundo, como Trump nos EUA, Johnson e o movimento do Brexit no Reino Unido e Orban na Hungria). O termo “ucranizar” poderia ser igualmente apropriado por movimentos de esquerda aqui no Brasil, pelos mesmos motivos: revolta contra o governo, valores antifascistas e luta contra a corrupção, agregando-se aí grupos de extrema-esquerda no país, saudosistas do comunismo soviético. Vivemos na era da internet, das redes sociais onde todos os grupos têm voz, em que símbolos são ressignificados constantemente. Temos que ter consciência disso – nossa interpretação é nossa interpretação. A Ucrânia já se manifestou, só precisamos ouvi-la.