1) CEP (Cultura em Peso) – Em que momento se encantou pelos tambores, Ge? Ou melhor, conte-nos como ocorreu a paixão pela percussão?
Ge – Começou na infância. Eu cresci em Magé, uma cidade mais afastada do centro urbano do Rio, a casa que eu cresci tinha um quintal grande e meus pais eram muito festeiros, levavam o grupo de pagode do bairro lá pra casa, então quase todo fim de semana era pagode e churrasco no quintal. Cresci nesse meio de música, festa, samba, pagode, instrumentos de percussão e foi aí que eu dei minhas primeiras batucadas, pentelhando os músicos que tocavam lá. E gostei. O repique era o meu instrumento preferido.
2) CEP – Além de musicista também és bastante engajada em ações sociais. Já fez parte do projeto “Musik Fabrik – Fábrica Livre de Construção Musical” ministrando aulas em comunidades do Estado do Rio de Janeiro, do que se tratava especificamente este projeto?
Ge – A definição oficial do MusikFabrik é “um espaço permanente de investigação, pesquisa e exercício da linguagem musical em seus variados aspectos, principalmente aqueles relacionados a etnomúsica, além das diversas relações que se pode estabelecer entre Música e Sociedade, abrangidas por conceitos como a Arte-educação, por exemplo”. O projeto surgiu na minha vida assim: um dia alguém comentou sobre uma aula de construção de instrumentos que rolava na UERJ, (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Eu me interessei e fui lá ver qual era. Me inscrevi, achando que eu chegaria lá já mexendo em serras e cortando madeira. Na primeira aula, o meu eterno mestre Spirito Santo colocou todos os alunos sentados em círculo com uma folha grande de papel pardo, giz de cera, e pediu que a gente desenhasse o que viesse à mente enquanto ele tocava uma kalimba. (Se alguém não sabe o que é kalimba, recomendo esse vídeo https://youtu.be/Yr-P5sWx-V0).
Eu não sei explicar direito o que aconteceu, mas foi a primeira vez em que eu percebi que música não era só um conjunto de sons pra entreter pessoas falando alto, rindo, consumindo álcool e churrasco. Não que isso seja ruim, eu jamais desdenharia das festas (saudades, inclusive). Mas foi no Musik que eu tive meu primeiro contato lúdico com a música e saquei que era algo poderoso, capaz de alcançar uns lugares dentro de mim que eu nem sabia que existiam.
Ah, e nessa atividade da Kalimba eu desenhei uma família feliz de leões matando a sede, bebendo água em uma fonte, depois de uma longa peregrinação na savana.
Nas aulas seguintes a gente começou a meter a mão na massa mesmo, lixar, cortar madeira, pintar, fazer o trabalho pesado. Foi minha primeira experiência tocando com outras pessoas, com instrumentos que eu mesma construí, foi muito rico pra minha trajetória. Por causa desse projeto eu acabei conhecendo pessoas que davam aulas e oficinas em projetos sociais, e durante um período eu participei de atividades em alguns projetos para crianças e adolescentes, nas cidades do Rio de Janeiro e Niterói.
Atualmente eu também sou uma das colaboradoras da Hi Hat Girls, projeto lindo idealizado pela minha querida amiga Julie Sousa. A Hi Hat oferece oficinas gratuitas de bateria pra mulheres e meninas a partir dos 7 anos de idade, com intenção de incentivar o interesse feminino pelo instrumento, estigmatizado como masculino. É um projeto foda demais, que eu me orgulho de fazer parte.
3) CEP – Recentemente lançou o projeto “Borda” que tem o propósito de divulgar a cena underground. E dentro deste projeto há uma ação chamada “Uma por Dia” que exalta a atuação das mulheres dentro da música underground. A intenção é incentivar outras meninas a se interessar por tocar numa banda? Ou para fortalecer a mulher dentro da cena?
Ge –A intenção principal é exaltar a presença feminina e mostrar que somos parte essencial da cena underground, trabalhamos e produzimos pra cacete, ainda que muitas vezes a gente nem receba os devidos créditos pelo nosso trabalho. Mulheres não são enfeites ou acessórios nas bandas, estúdios, eventos, palcos, ou “namoradas de alguém”, como muita gente ainda insiste em nos tratar.
Eu decidi fazer o “Uma por dia” depois de descobrir que eu existo no site Metal Archives, mas a minha biografia se resume a “ foi casada com {link para o perfil do meu ex}”. Só isso. Imagina só, você tá há 11 anos em uma banda, ralando pra cacete, gravando, produzindo banda, evento, zine, documentário, pra no fim das contas ser resumida a um macho. Fiquei puta, mas infelizmente a nossa realidade é essa. O problema existe e eu escolhi fazer algo pra pesar do lado oposto a ele, então criei esse espaço com biografias do jeito que eu acredito que elas devem ser. Falando de influências, trabalho, discografia, projetos paralelos e qualquer outra informação que seja importante pra mulher que está lá.
Eu acredito que incentivar mulheres é uma consequência natural de um trampo como esse, assim como eu fui incentivada também. Em 2019 eu trabalhei em um evento chamado “Women in Science” no Museu do Amanhã, aqui no Rio, e lá eu tive o prazer de conhecer a Jess Wade, cientista britânica, que ficou bastante conhecida por escrever páginas na Wikipedia sobre mulheres ignoradas pela ciência. Foi um evento muito lindo e inspirador. Eu saí de lá com muita vontade de fazer algo parecido, não sabia exatamente o que, só soube com o lance do Metal Archives.
Eu gostaria de conseguir postar muito mais biografias no site da Borda, tem muita mulher foda. Esse trampo demanda muito tempo, então vou fazendo conforme a minha disponibilidade. É trabalhoso e gratificante, tem me fortalecido nesses tempos escrotos. Fico muito inspirada a cada biografia que eu publico.
4) CEP – A Gangrena Gasosa criou o estilo “Saravá Metal” que mescla metal e hardcore com elementos da cultura afro-brasileira. Busca inspiração nos batuques de terreiro umbanda?
Ge –Sim! Eu não sou religiosa, mas eu sou apaixonada pelos toques de atabaque e pela música raiz dos terreiros, sempre procuro levar pro meu trampo com a Gangrena Gasosa.
Vou aproveitar a pergunta pra fazer um merchanzinho. Eu curto tanto a curimba que tenho um canal no Youtube chamado Art Macumba, que disponibiliza álbuns de pontos de umbanda e candomblé. Ano passado o canal foi contemplado em um edital da lei Aldir Blanc, rolou uma merreca e eu tive grana pra produzir um conteúdo bem legal, gravado em um terreiro, com um ogã falando sobre os toques, em que momento da gira eles são utilizados, quais orixás representam… convidei meus amigos Diego Padilha, baixista da Gangrena e o Davi D´Oxóssi, que é ogã e metaleiro como nós. Ficou lindo, modéstia à parte. Em breve vai estar lá no canal. Se inscrevam lá no Art Macumba.
5) CEP – Fora o som ser bastante criativo, cada integrante da Gangrena Gasosa possui uma entidade que incorpora, algo bem curioso, e a sua é a Pombagira Maria Mulambo. Identifica-te com esta entidade? Por quê?
Ge –Quando eu entrei na banda eu precisava escolher uma entidade. Eu escolhi a Mulambo por três motivos. Primeiro pela história dela, que é bem sinistra, cheia de preconceito, dor e sofrimento. Ela era filha de uma negra escravizada com um sujeito rico, dono de muitas terras. Ela levava uma vida de princesa, mas após a morte do seu pai ela foi esculachada, traída, roubada, enganada e morreu vítima de feminicídio, esfaqueada e queimada em uma lixeira. A história é bem pesada. Como eu estava entrando em uma banda de música pesada, achei que seria interessante representar essa entidade.
Eu também recebi recomendações de uma mãe-de-santo de não usar nada que remetesse ao povo cigano. Fui alertada pra não usar alguns acessórios, e a Mulambo se encaixava nas recomendações da mãe-de-santo sobre o que era mais indicado pra mim.
O terceiro motivo é a facilidade do figurino. Eu não sou a pessoa mais vaidosa do mundo, então me caracterizar de Mulambo é conveniente.
6) CEP – Há algum (a) percussionista que te inspira? Qual?
Ge – Sou muito fã do Mongo Santamaria, percussionista cubano, falecido em 2003. Acho que os álbuns Afro Roots e Afro Indio são os que eu mais ouvi em toda a minha vida. Nunca canso deles. Também tem o brasileiro Naná Vasconcelos, o álbum Amazonas é uma viagem muito louca que eu sempre tenho o prazer de embarcar.
7) CEP – Qual show que fez que mais te marcou e por quê?
Ge – Difícil essa, hein? Olha, eu lembro com muito carinho do show que fizemos no Armageddon Metal fest, em Joinville. Foi uma ocasião em que tudo deu certo, tanto com a produção do evento, que nos tratou com o máximo respeito, quanto entre nós mesmos, foi um marco de coisas funcionando, internamente e externamente, e isso tem um valor muito grande pra mim. Eu sempre quis algo maior que tocar na garagem de casa, eu estava completando 10 anos de banda e foi como um presente, um reconhecimento pelo meu esforço, acredito que pra todos da banda também. Sempre somos muito bem recebidos no Sul.
8) CEP – Lançaram em 2020 o EP ”Kizila” com dois sons. Há previsão de lançarem um novo full lenght?
Ge – É complicado dar uma previsão. Estamos respeitando o isolamento, de verdade. Eu estou decidida a não vou entrar em um estúdio enquanto não for vacinada.
Continuamos trabalhando em novas composições, mas elas só serão finalizadas quando for possível a gente se reunir e trabalhar presencialmente. Infelizmente, não sabemos quando vai acontecer, rolam essas previsões de vacina, mas eu prefiro nem alimentar esperanças, por motivos de Brasil.
A hora que rolar, vai rolar. E vai sair um álbum com muito ÓDIO no coração.
9) CEP – Como a Gangrena Gasosa está lidando com a pandemia em termos de produções e ensaios?
Ge – A banda puxou o freio na pandemia. Fazemos reuniões pelo zoom, temos bastante coisa encaminhada e estamos no aguardo da vacina. A banda é grande, tem 6 cabeças, só a própria banda já é uma aglomeração.
10) CEP – Qual banda de som pesado que curtes que usa como referência para compor a percussão dos sons da Gangrena?
Ge –Na verdade a minha referência de percussão não tem muita ligação com a música pesada. Eu sou apaixonada por salsa, rumba, ritmos cubanos. A música pesada caiu de paraquedas na minha vida, eu só conhecia Ratos de Porão e curtia alguns clássicos, como Metallica, só fui me aprofundar na música pesada depois do convite pra entrar na Gangrena mesmo (POSER! KKKKK)
Foi aí que eu me conectei com a desgraça sonora e gostei do que ouvi. Slayer, Morbid Angel, Cannibal Corpse, Brujeria, Ministry, Carcass. E atualmente também eu tô ouvindo bastante as bandas das mulheres que estão no Uma por Dia, da Borda. Tô ouvindo Losna direto! rs
11) CEP – Agradecemos por ceder esta entrevista, Ge. Parabéns pelo talento e iniciativa em apoiar causas sociais e apreço pelo nosso underground artístico. Deixe uma mensagem para os leitores do Cultura em Peso.
Ge –Eu que agradeço pelo espaço! Valeu mesmo! E sobre a mensagem, eu só gostaria de deixar um convite para a galera refletir sobre o nosso papel pra fortalecer o underground. O único meio que a gente tem hoje pra divulgar o nosso trabalho é a internet. Os conteúdos mais acessados, compartilhados, com mais interações e comentários são sempre os conteúdos que não acrescentam em nada. Tretas, fofoca… Na minha timeline aparece direto o cara da banda famosinha, que é uma máquina de falar bosta, fazendo o que faz melhor: falando bosta. Milhares de reações, centenas de comentários com textão. Enquanto isso as bandas e mídias independentes, produzindo arte e conteúdo, sem grana pra patrocinar post, não chegam nem perto do alcance e engajamento orgânico que essas notícias fúteis tem.
Então convido todos que estiverem lendo essa entrevista para fortalecer as bandas e as mídias independentes na internet. Que tal ir lá nas redes sociais da banda que você gosta, rolar o feed, curtir as postagens, comentar, compartilhar, recomendar?
E que em breve estejamos todas vacinadas e batendo cabeça nos shows!