No passado fim de semana de 8 a 10 de novembro, decorreu mais uma edição do AMPLIFEST no HARDCLUB, cortesia de AMPLIFICASOM, e contou com um cartaz deslumbrante que ia desde o neo-folk de CINDER WELL, à violência de LLNN, passando ainda pela deusa da negritude CHELSEA WOLFE, e muitos outros excelentes nomes.
O AMPLIFEST 2024 decorreu entre os dias 8 a 10 de Novembro, numa edição que já se encontrava esgotada uns belos meses antes do seu arranque, e que contou com festivaleiros de dezenas de nacionalidades diferentes. Para além dos dois dias de música intensos, proporcionou ainda um dia zero que contou com VELHO HOMEM no Mercado do Bolhão, OKKYUNG LEE em Serralves, e ainda uma listening session de THE BODY, JOHN CXNNOR e uma performance do DJ NO JOY no FERRO BAR.
Antes de partir para as atuações do primeiro dia, acho importante referir que este festival oferece muito mais do que concertos. Oferece experiências, variedade, diversidade, inclusão… Tem uma secção de merch muito forte com marcas extraordinárias como Bunker, Mondo negro, Dead Flag, Stratgean, entre outras. Teve ainda uma exposição de arte de André Coelho, disponibilidade de snacks de acesso fácil, sem precisarmos de sair do recinto e toda a informação necessária para um expectador não perder nada e de forma extremamente organizada. Oferece ainda Amplitalks que fomentam a conversa entre público e banda e a possibilidade de falarmos com qualquer grupo, pois os membros dos mesmos circulam pelo festival não havendo a sensação de distanciamento entre o artista e o expectador. Absolutamente incrível!
DIA 1
Passando agora para a vertente musical, o cartaz estava deslumbrante, tal como a AMPLIFICASOM nos tem vindo a habituar ao longo destes anos, e a curiosidade era muita para assistir às atuações deste ano. O primeiro dia de festival contou com Insect Ark, AVESSO, MIZMOR, Cinder Well, LLNN, Fvnerals, Russian Circles, Living Gate, Ufommamut, UF e ainda um DJ Set Amplificasom. As atuações dividiam-se em dois palcos, Büro Stage e Dois Corvos Stage que eram as cervejas patrocinadoras do evento.
INSECT ARK – Büro Stage
A primeira banda a atuar neste primeiro dia de festival foram os INSECT ARK que tinham a tarefa de aquecer o ambiente para dois dias que se previam ser longos. Este trio alemão, com o seu Noise/ Post Sludge Doom fê-lo com a maior das facilidades. Uma atuação que arrancava às 13h30 e tinha sala cheia? Nunca tinha visto nada assim…
Existia muita complexidade nas músicas deste trio. Daquele estilo em que a música começa de uma forma, viaja para outra e termina de uma terceira completamente diferente. Não é fácil gerir tal complexidade ao vivo e guiar ao longo tema, e por isso existiam várias trocas de olhares entre os elementos para se situarem nesse aspeto. Mas faziam-no parecer fácil de tanta confiança e segurança terem neles mesmos e entre eles. Apresentavam vários apontamentos Avant gard, à Triptykon, alguns teclados soturnos que faziam até lembrar Cradle of Filth (por muito estranho que possa parecer), elementos à black metal como e muitas outras coisas de diferentes mundos, que culminados resultam em algo belo: os INSECT ARK.
Um aspeto interessante neste grupo era o facto do guitarrista utilizar várias vezes uma guitarra pousada sobre uma mesa para, de entre de muitas outras coisas, utilizar a técnica slide guitar na mesma. O resultado era, no mínimo, belo. Em alguns dos temas, também existia tremolo picking, muita dissonância, bastante reverb na guitarra criando um ambiente gélido e ofegante, e ainda, de forma diria imprevisível, vários solos de guitarra que criavam melodias cortantes. De destacar também o baterista Tim Wyskida com bastante técnica, apesar do ritmo sempre soturno e maioritariamente lento.
A vocalista e baixista Dana Schechter transpirava energia, sempre em movimento que se tornava contagiante. Houve ainda tempo para uma pequena partilha da mesma : “You are so lucky, this is a beautiful festival, in a beautiful place with beautiful people“. Não poderia estar mais de acordo!
Os INSECT ARK colocam alguns momentos de luz nas suas músicas criando um efeito de miragem: o ouvinte vê a luz mas nunca a consegue alcançar no meio de tanta negritude. Esses momentos são bem representados com pseudo melodias desérticas.
Já quase a chegar ao final do concerto, Dana introduz os elementos da banda e arranca naquilo que seria a nossa última viagem com os alemães. Neste último tema diria que atingiram o auge no que se refere ao fator surpresa, embora ao longo de toda a atuação este elemento estivesse sempre presente. Um tema com arranques mais rápidos, estilo vocal diferente, com mais berros e sons “estranhos” foi protagonista daquilo que viria a terminar esta viagem. Este tema foi o apogeu do efeito miragem pois a luz está sempre presente, mas mesmo de olhos sempre postos na mesma, o afastamento é palpável, e o aumento de intensidade da música é o reflexo do sentimento de frustração que se apodera de um ser humano quando algo se avista tão perto mas, ao mesmo tempo, algo nos puxa na direção contrária. Sentimentos tão estranhos mas, ao mesmo tempo tão quotidianos.
Com INSECT ARK tem que se esperar o inesperável. É cru, sinistro, desolado e destemidamente único. Texturas negras, peso esmagador, delicadeza cruel, como se de um filme de terror se tratasse. Foi absolutamente mágico. Com um arranque do dia 1 assim, nem dá tempo de aquecer.
AVESSO- Dois Corvos Stage
A primeira banda a pisar o Dois Corvos Stage foram os nacionais AVESSO. Projeto bastante recente que resultou do encontro improvável de músicos oriundos de diferentes linguagens musicais, e que rapidamente se transformou num consistente e promissor projeto artístico.
Tentando caracterizar o estilo musical dos AVESSO, diria que vai desde um post rock até a um stoner/sludgy rock cantado em português, com muita influência lírica de Fernando Pessoa e filósofos de outrora. Como os próprios membros do grupo dizem, os AVESSO exploram, através da sua música, os domínios do espírito humano, não se fechando a fórmulas e regras, sendo artisticamente livres tanto em termos líricos como de composição instrumental.
O grupo é constituído por Diogo Leite na bateria, Dani Valente na guitarra, Vitor Hugo na guitarra e vocais limpos mais harmoniosos, mas do nada sai-se com fortíssimos gritos, e Paulo Rui no baixo e voz com vocais mais rasgados e até berrados.
Algo muito interessante neste grupo, e que vai de encontro à sua persona, é a introdução que fazem aos temas, sempre com uma breve explicação da mensagem que tentam (e conseguem) passar com as suas músicas. Alguns exemplos do que se ouviu no palco Dois Corvos são “Sem barreiras, sem fronteiras, sem bandeiras, amor para todos” , “Temos o céu e o inferno dentro de nós, independentemente de quem sejamos” e “De sorriso na cara, porque tristeza não é derrota“. Estes exemplos já permitem ter uma ideia do que ali se passou e, a quem não conhece este grupo e não esteve presente, despertar aquela curiosidade de ir ouvir o seu recente álbum “Desassossego“.
E que energia que este grupo transmite, especialmente o animal de palco Paulo Rui! Sempre com bastante interação com o público, alguns momentos de riso pelo meio, mas sempre com o objetivo de tocar nas almas dos ouvintes. Abordam e incluem nas suas músicas, temas e citações que, embora antigas, continuam a ecoar no momento presente, portanto, estamos a falar de autênticos poemas cantados, intemporais, com bastante significado por detrás e que todos nos identificamos.
Sinto necessidade de destacar o último tema do concerto “Quem tem alma não tem calma” que foi uma verdadeira descarga emocional, onde a banda deu o mote final para o que foi um concerto fantástico onde a ligação entre a banda e o público foi simbioticamente arrebatadora. Um grande concerto da única banda portuguesa do primeiro dia do festival, provando que estamos num bom caminho.
MIZMOR- Büro Stage
MIZMOR consiste num one man project, criado pelo americano Liam Neighbors que mistura elementos de Black/Drone/Doom Metal. Interessantemente, são três dos meus estilos favoritos e portanto a excitação para assistir a esta performance era imensa!
Com um “argh” sobre uma parede de tremolo picking e blastbeats iniciou o seu espetáculo como uma chapada na cara dos espectadores, e vociferou com tanto ódio e desespero que deixou toda a gente estupefacta em segundos. Um detalhe que possa ter passado despercebido, é que sempre que Liam berrava, punha-se em bicos de pés como que se tentasse elevar o seu desespero para um nível sobre-humano, como se todo aquele sentimento precisasse de sair do seu corpo de uma outra forma que não apenas em voz, mas não sendo isso humanamente possível. Liam também tocava descalço para sentir a vibração da sua música que assim seria possível entranhar-se pelos nervos do seu corpo.
Os seus temas apresentam mudanças de ritmo tão bruscas que deixavam sempre uma sensação desconfortável no corpo frágil de um humano. Tanto estávamos perante um black cheio de pujança, como de repente um drone cavernoso com pequenos detalhes de melodia para nos prender ainda mais àquele “desastre” que tão bem nos sabia.
A voz era abismalmente dolorosa. Variava entre os mais graves aos mais rasgados berros, tendo uma versatilidade mesmo fora deste mundo. Este vocalista faz tudo com uma força e segurança incrível! Sendo a voz tipicamente do black metal , o instrumental faz uma viagem bem mais ampla que vai desde o mais puro do black metal ao mais lento do Funeral Doom, passando ainda pelo mais estranho do drone. Viajamos do mais pesado ao mais ambiental, leve e harmonioso das suas guitarras isoladas mas com melodias tão desesperadas como antes. E misturando todos estes elementos temos MIZMOR. Até as expressões faciais do vocalista expeliam sofrimento. A dor era tão palpável como infecciosa.
Apresentando uma visão mais pessoal, o que os MIZMOR fizeram foi buscar um sentimento dentro de mim que nem eu sabia que existia, e penso que isto foi um sentimento partilhado por muitos dos presentes naquela sala. Um concerto de 45 min que pareceu passar em apenas 5 de tanta envolvência criada, por muito que as músicas fossem longas.
Obrigada AMPLIFEST pela oportunidade de assistir a esta incrível atuação!
CINDER WELL- Dois Corvos Stage
E passámos do mais pesado do doomed black metal para o mais harmonioso, delicado e belo do neo-folk de CINDER WELL. Tanto o recinto de MIZMOR como agora de CINDER WELL estavam cheios, provando que o público do AMPLIFEST é sem dúvida de horizontes bem alargados. Neste concerto de CINDER foi até necessário parar a entrada de pessoas pois já não cabiam mais na sala!
Sei que estou a ser repetitiva ao dizer que tinha curiosidade em assistir a este ou aquele artista, mas com os nomes que AMPLIFCASOM apresenta, é impossível não ter. E neste caso, tive muita curiosidade em saber como seria uma atuação de CINDER WELL com o público do AMPLIFEST. Estamos a falar de uma artista sozinha no palco, apenas com a sua guitarra e a sua voz. Zero gimmicks, zero efeitos, apenas a simplicidade.
CINDER WELL destaca-se por estar na vanguarda de um tipo diferente de renascimento da música folk transatlântica, sendo este um estilo bem antigo e centrado nas tradições das comunidades e nas suas lutas intemporais. Mas a verdade é que nos últimos anos toda uma nova geração de músicos tem pegado no bom e velho folk como ponto de partida para algo diferente, experimental e aventureiro. CINDER WELL é um dos nomes em ascensão de toda uma geração liderada por alguns artistas que se tornaram grandes em pouco tempo e o público português teve aqui, no AMPLIFEST, a oportunidade de assistir à sua estreia em Portugal.
Num concerto intimo, com alguma comédia envergonhada pelo meio, estivemos perante uma viagem onde CINDER WELL nos levou a prados verdejantes, onde tudo é calmo e onde sentimos os pés assentes na terra. Tudo isso é representado na sua performance e mistura entre o timbre inocente e angelical com o neo-folk simplista das cordas da sua guitarra. Foi a antítese do que até ao momento se tinha sentido neste festival. Sem eletricidade e de volta às raízes da música em geral.
Entre músicas, não existiam momentos constrangedores mas sim uma ligação quase pessoal com o público com alguns momentos de partilha pessoal. A certo momento CINDER diz “If you feel weird about singing, then think about how I feel” e o riso é o denominador comum na sala Dois Corvos, mesmo as suas temáticas sendo sobretudo sobre assuntos melancólicas.
O tema “No Summer” foi um momento especial neste concerto pela beleza particular e distintiva desta música. Na introdução da mesma, mais alguma partilha pessoal e mais uma vez, algum humor tímido que põe toda a gente a rir: “Lived in Ireland for enough time to write this song. It is called ‘No summer’ “.
Houve ainda tempo para uma surpresa: um tema que ainda não está disponível em qualquer plataforma foi interpretado. Esta música foi dedicada a um amigo de CINDER que era fã de pop punk e que infelizmente faleceu no verão passado. CINDER desafiou-se então a fazer uma música desse estilo sem perder as suas raízes neo-folk. O resultado foi uma bela canção, com um peso emocional acrescido e que tocou no coração de todos os presentes.
E como se o peso emocional já não fosse suficiente, finalizou com um tema que é uma homenagem à sua avó que faleceu quando CINDER era jovem. Antes de arrancar, agradeceu a todos os presentes e ao AMPLIFEST pela presença, e nós agradecemos também por esta oportunidade de ver algo, provavelmente diferente para muitos, daquilo que costumamos encontrar nestes festivais de música extrema. O tema tenta explicar como era a vida de alguém que viveu nos anos 50 e diria que todos fomos transportados para essa época através da guitarra e voz de CINDER. Uma viagem no tempo com um toque nostálgico e triste.
É impressionante o que CINDER WELL conseguiu fazer. Com tanta simplicidade, enfeitiçou as almas e tocou no coração de todos os presentes, sendo apenas ela mesma e falando das suas experiências pessoais. O concerto terminou com palmas e assobios durante vários segundos e os amplifesters realmente adoraram esta surpresa.
AMPLITALK com INSECT ARK
Durante o concerto de CINDER WELL, existiu o primeiro Amplitalk desta edição do AMPLIFEST com os alemães INSECT ARK. Esta sessão, permitiu a partilha de ideias, informações e curiosidades entre o entrevistador e a banda, mas também possibilitou ao público e fãs falarem e questionarem o grupo. Estas inciativas são um dos pontos de gigante valor deste festival e espero que se mantenha para edições futuras!
LLNN- Büro Stage
E de repente, passamos da harmonia e leveza de CINDER WELL para a brutalidade de LLNN.
Os LLNN são um quarteto completamente tresloucado com um blend de hardcore, sludge, math core, noise e industrial. O peso apocalíptico da música destes dinamarqueses é absolutamente abismal, como se de um buraco negro capaz de engolir galáxias inteiras se tratasse. Cada breakdown era uma explosão de raiva. O olhar louco dos membros da banda transpirava fúria, assim como o seus brutalíssimos movimentos.
Este grupo é completamente esmagador, absurdamente criativo no sentido em que (e isto pode ter piada) se baseiam sobretudo em criatividade oriunda do gaming, pois todos os elementos da banda são gamers e utilizam isso como inspiração para a composição e atuação banda de um modo geral. Não sei quanto a vocês, mas eu nunca tinha visto nada assim!
Podemos contar ainda com a participação do vocalista dos AVESSO, Paulo Rui, que em tudo ficava bem pois estamos a falar de outro tresloucado (no bom sentido da palavra, obviamente), criando aqui um momento de adrenalina quase perigosa. E foi ele o primeiro protagonista do primeiro mosh e crowd surfing do festival. A música pedia mesmo isso, destruição total. Até as paredes tremiam!
Já perto do fim da atuação de LLNN, todos os elementos abandonam o palco e o vocalista permanece, larga a guitarra e solta o lado mais animalesco do ser humano (e honestamente pensava não ser possível superar o que já havia sido apresentado). Fez uma performance arrebatadora apenas com uma batida industrial de fundo e, de repente, não está uma pessoa em palco mas um animal a contorcer-se e o ambiente fica cada vez mais perigosos. Há um sentimento de que nunca se sabe o que vai sair dali e o público fica louco. Nunca senti nada igual.
Os restantes membros da banda voltam a subir ao palco e o público foi ainda mais ao rubro quando parecia que não dava para aumentar ainda mais o nível de intensidade. Para terem noção, no fim do concerto, quando o público saiu do recinto, o mesmo estava com um aspecto de que tinham passado por uma catástrofe natural, e realmente assim o foi.
O meu corpo tremeu durante uns belos minutos após a atuação já ter terminado. O que se passou ali é impossível ser contado por palavras. O que tenho a dizer aos nossos leitores é, se tiverem a oportunidade de assistir a estes dinamarqueses, não a percam. E antes, preparem-se psicologicamente para viver algo que nunca mais irão esquecer.
FVNERALS- Dois Corvos Stage
A sala já estava praticamente cheia e ainda faltavam uns minutos para FVNERALS subirem ao palco, querendo isto dizer que apesar de atuarem na sala mais pequena, muita gente estava ansiosa por este concerto.
Como uma música pode passar de dark ambient intimista até drone/doom destrutivo? Ouçam FVNERALS. A resposta está na forma como pensam as músicas e entendem que os crescendos de intensidade e até de camadas levam o seu tempo. Cada música é um colossal crescendo ou decrescendo com pequenas exceções onde houveram quebras abruptas. O espaçamento entre notas cria uma experiência sensorial exaustiva no público. Tendo tudo isto dito, considero muito difícil conseguir caracterizar este duo de Leipzig, musicalmente. Diria que está além de caracterização, ou até mesmo além da música.
Tratam-se de um poço sem fundo, diante do pesadelo em que somos largados na vida sem qualquer preparação, sem qualquer aviso. Perdidos, à deriva, desorientados, num horroroso e complexo labirinto. Foi isto que senti durante esta atuação perante uma voz leve, sensível e bela que se entranha e contamina em segundos e vagarosos ritmos lancinantes que marcam a pele sem qualquer piedade. A juntar à sua soturna sonoridade, vídeos de fundo com imagens noturnas e complexas criam um ambiente ainda mais dark, como se ainda não fosse o suficiente.
Preocupam-se com o distanciamento com o público, e isso é demonstrado pela falta de palavras entre temas. Não que isto deva ser encarado como arrogância, mas sim, como uma forma a criarem o ambiente gélido desejado e conseguem-no com todo o sucesso.
A certo momento, estamos perante um tema com spoken words que aumenta exponencialmente a intensidade e melancolia, pois a sua voz demonstra dor e raiva. Segue-se uma passagem bem lenta e pesada que torna impossível não abanar a cabeça. As vibrações correm pelas paredes e chão da sala.
A viagem parecia não poder ficar mais dolorosa emocionalmente, até chegarmos ao último tema. O baterista abandona o palco com o barulho de fundo das palmas, a vocalista larga o seu baixo e finalizamos a viagem com um tema onde a voz e a guitarra funcionam numa simbiose perfeita e soturna até o silêncio dominar a sala, seguido de palmas.
Se há palavras que possam descrever e bem esta experiência, é “hipnótico” e “lancinante”. Foi aqui, no palco Dois Corvos do AMPLIFEST, que FVNERALS se estrearam em solo português. Apenas o AMPLIFICASOM teria coragem de trazer este poço sem fundo a Portugal.
RUSSIAN CIRCLES- Büro Stage
O relógio bate as 21h em ponto e chegou a hora dos americanos nos contaminarem com o seu Post Metal/ Rock criativo.
Uma banda instrumental atuar numa hora tão procurada num festival com tanta boa banda tem muito que se lhe diga… São mestres na composição e são capazes de apenas com um baixo, uma guitarra, uma bateria e sons de sintetizador criar um ambiente indescritível. E para juntar ao cariz celebratório desta edição do AMPLIFEST, isto porque estamos a celebrar os 18 anos de AMPLIFICASSOM, nada como chamar uma banda que já passou pelos palcos deste festival e já o considera como sendo parte da sua família.
Os RUSSIAN CIRCLES têm uma capacidade enorme de, dentro do post rock/metal, criar uma montanha russa de sentimentos numa música só. Passam do ambiental ao dissonante e até ao peso mais eletrizante num piscar de olhos. Sem fugir da sua linha estilística, têm devaneios que vão do progressivo, ao sludge e até ao shoegaze por vezes, tornando a sua música sempre interessante, surpreendente e sem necessitar de vocais. Cada música era uma viagem por atmosferas muito dispares. No que toca aos riff’s, diria que têm momentos de peso de fazer inveja até aos reis da criação dos mesmos, os Gojira!
De destacar o bom jogo de luzes deste grupo que consegue intensificar e de certa forma teatralizar o espetáculo nos momentos em que a música o pede, tornando esta atuação, não apenas uma atuação musical mas também visual e sensorial, sem precisar de grandes truques.
O trio tem elementos super fortes tecnicamente em cada uma das suas artes. Isso vê-se pela complexidade dos temas e pela forma seguríssima com que são tocados. Destaque para o baterista Dave Turncrantz pois cria sonoridades e precursões que, em muitos concertos que já vi, não são fáceis de encontrar. Têm ainda um guitarrista estrondoso, Mike Sullivan, mestre em construir as melodias e faz com que se entranham em segundos. Com recurso à utilização de um pedal de loop, não ficam limitados a uma só sonoridade de guitarra, permitindo ir construindo as melodias com o decorrer da música e sempre acrescentando algo novo sem perder o que está para trás.
Normalmente associa-se algo complexo a algo que se estranha e depois se entranha. Mas os RUSSIAN CIRCLES fazem algo mega complexo que rapidamente se infiltra em nós e nos agrada em segundos.
O ambiente, este não se perdia nem nas pausas entre músicas onde os elementos afinavam os seus instrumentos, porque existiu preocupação para que as melodias soturnas tocassem nesses intervalos. Mais uma vez, refiro, não se tratou apenas de um concerto, mas de toda uma experiência sensorial.
Foi daqueles concertos em que é literalmente impossível distrair, sair a meio ou até mesmo depois de terminar pois mesmo tendo este concerto mais de uma hora de duração, o pública queria ainda mais!
LIVING GATE- Dois Corvos Stage
O relógio dá as 22h30, já lá vão 9h de música e chegou a hora do Death Metal Técnico dos LIVING GATE invadir o AMPLIFEST. A banda que contém elementos da Bélgica e Estados Unidos, formada apenas em 2020 e com um EP e um álbum editado em outubro de 2024 na bagagem, mereceu uma gigante atenção neste festival como se de uma banda com muitos anos de carreira se tratasse. Isto demonstra que o AMPLIFICASOM tem bom olho e não se agarra apenas aos nomes de longos anos de carreira e com uma rede de fãs já formada.
Esta banda é tão selvagem mas também tão boa tecnicamente que apetece contorcer-me toda e abanar a cabeça ao som do ritmo rápido da música mas, ao mesmo tempo, assistir à atuação sentada, de perna alçada, para ser possível contemplar e admirar as qualidades técnicas individuais de cada um dos elementos. Assistir àquele requinte técnico todo é raro e absolutamente deslumbrante.
Estes senhores já têm experiência de palco vinda de outras bandas, nomeadamente Amenra, Norska, Crouch, entre outras, portanto não são nada novatos por estas andanças e demonstram-no com mestria.
“Funny Moment“: De entre aquela postura fria, rígida e profissional, surgiu um momento engraçado de partilha por parte do grupo. Aparentemente o baterista descobriu que existiam dois aeroportos na Bélgica da pior forma… Felizmente, tudo se compôs e conseguiu chegar a Portugal a tempo da atuação. Portanto, parece que no meio do azar, os astros acabaram por se alinhar para nos proporcionar ali um verdadeiro momento de qualidade musical!
É uma banda a ter em atenção no futuro para fãs de Death e Blood Incantation, mas não só. Mesmo para quem não seja grande apreciador deste estilo (e claro, não podemos gostar todos do mesmo e o death metal não é algo tão fácil e simples de gostar devido à sua complexidade), espreitem este grupo pois penso que consegue agradar até aos mais difíceis ouvidos! Do melhor death metal que se faz de momento!
UFOMAMMUT- Büro Stage
Se o AMPLIFCASOM assinala o seu décimo oitavo aniversário, o trio italiano tem alguns anos a mais e celebra neste momento um quarto de século enquanto banda. Duas celebrações que se uniram numa parceria que faz todo o sentido: peso, psicadelismo, experimentação sonora, flexão de género… todas essas são características básicas da música de UFOMAMMUT que está em constante evolução.
Este trio formado em 1999 é mundialmente reconhecido como sendo criador de um género único de stoner/doom psicadélico: músicas longas, vocais monótonos parecendo que estão a sair do fundo da água e efeitos massivos. A banda combina riffs monumentais com um tipo peculiar de psicadelismo, criando um estilo musical característico e inovador.
Os UFOMAMMUT reservaram-nos mais uma viagem sónica, neste caso, uma viagem interplanetária, montada em repetições massivas de riffs cheios de distorção e reverb, onde estes riffs são alimentados a substâncias psicotrópicas e com capacidade de transmitir os seus efeitos para os espectadores.
Esta atuação teve tanto de energético como de hipnotizante. Samples alienígenas para criar um ambiente mais cósmico e tornou-se uma viagem menos física e mais mental, onde a percepção psicológica do que são os sentidos físicos se alienam e fundimo-nos com o que é o espaço físico da sala e quando damos por nós, fazemos parte da música de UFOMAMMUT. Estamos ondes eles estão e nos quiseram pôr. Fundimo-nos com o universo e somos apenas energia.
Na música dos italianos, existem poucos vocais, pois não são necessários para aquilo que UFOMAMMUT querem transmitir. Esta viagem quase não precisa de narração. Existe muito ênfase no baixo, com um som muito poderoso traduzindo-se num espetáculo de adoração ao riff, tornando-o sempre o epicentro da música e do ambiente criado.
Foi mais um excelente regresso a casa, após terem passado no AMPLIFEST em 2012, mas desta vez trouxeram-nos o mais recente trabalho “Hidden” lançado em Maio deste ano. Obrigada AMPLIFEST por proporcionarem mais uma atuação deste calibre!
UF- Dois Corvos Stage
Passadas longas horas de música e convívio, os UF estiveram encarregues do encerramento do primeiro dia do AMPLIFEST.
Numa era em que as colaborações musicais estão no auge, permitindo juntar coisas completamente distintas formando algo completamente novo, o AMPLIFICASSOM decidiu apresentar-nos UF. Este duo é formado por OAKE, artista alemão do techno experimental, e Samuel Kerridge, o produtor e performer britânico que também tem vindo a esventrar o que se entende por techno há mais de uma década. Juntos, formaram os UF, que se auto consideram como sendo um “power metal techno duo”, que me parece ser a melhor forma de caracterizar aquilo que apresentaram.
O que eles fazem é um ritual eletrônico para o fim do mundo onde já não nos reconhecemos como humanos mas como máquinas. Ao vivo essa imagem é bem passada com luzes a fazerem perder a percepção das formas humanas e os dois membros (principalmente o vocalista), tornam-se algo mecânico de natureza enraivecida e incontrolável.
Com pequenos apontamentos em spoken words e com um som onde a eletrónica, por vezes, dá lugar ao noise, sempre com berros cheios de reverb tornando tudo tão abstrato que se torna fácil perdermo-nos aquele labirinto sónico. Uma estranheza mórbida apoderou-se da sala. O público tinha de estar bem preparado para o que se estava ali a passar e eu, pessoalmente não estava! Dentro de toda a estranheza de um dia de AMPLIFEST, o mais estranho ficou para o fim (no bom sentido). Esqueçam todas a fórmulas ou pseudo fórmulas existentes para compor músicas. Aqui é experimentação total, sem regras.
UF foram uma das maiores surpresas do dia 1 do AMPLIFEST que chegou ao fim e contou com mais de 12h de música e o cansaço já era imenso. Restava recarregar energias para o segundo dia que se avizinhava ser tão bom como o primeiro.
Muita coisa se passou, muita arte pisou os palcos do HARD CLUB e havia muita coisa a processar. Mas ainda não era momento para isso. Para já, descansar pois no dia seguinte iriamos a viver mais um dia memorável.
Obrigada AMPLIFEST, AMPLIFICASOM e todos os envolvidos nesta edição. Amanhã há mais!