Na passada quinta feira, dia 17 de Outubro, viveu-se no Porto um evento que certamente ficará na memória dos presentes por muito tempo. Um cartaz absolutamente espetacular, onde todas as bandas poderiam ser facilmente cabeças de cartaz: Rotting Christ, Borknagar e SETH aqueceram a cidade invicta e fizeram com que aquela quinta feira de outono parece-se uma sexta feira de verão!
A Notredame Productions é das promotoras nacionais com mais nome e a cada data anunciada justifica mais esse rótulo. Pessoalmente, este cartaz era dos que mais ansiava em 2024 e contou com uma sala esgotada!. Com estes nomes, o que poderia correr mal?
SETH
Embora a abertura de portas fosse bastante cedo para um dia da semana (18h30), o arranque dos concertos acontece às 19h30 em ponto com os franceses SETH. Iniciaram com uma sala um pouco vazia mas a meio do concerto já não se via muito chão na sala 1 do Hardclub.
Apresentaram-se como sendo vindos do país onde “A Notredame ardeu” e trouxeram na sua bagagem o seu novo álbum, La France des Maudits, editado em Julho de 2024, o que certamente despertou a curiosidade nos fãs da banda e de black metal de um modo geral.
Esperava-se um espetáculo obscuro, teatral e honesto, e assim o foi! Foram vários minutos de uma postura quase imperial que o seu black metal exige, mas sem nunca abdicaram de uma ligação forte com o público, demonstrando uma gigante humildade.
Com os seus riffs e trêmulos descarados e estridentes, narrados por reconhecíveis guturais cortantes, acompanhados por sintetizadores que adicionam um elemento dramático e sofisticado às composições, e ainda temperando com blastbeats e doses mais pesadas de melodia, conseguiram contaminar a sala de uma gigante negritude.
Nos temas mais comoventes, a melancolia era trespassada para nós quer quiséssemos quer não, pois estes franceses são prós na criação deste tipo de ambientes misantrópicos, através de atmosferas aprimoradas e ritmos dinâmicos e fluidos, aliando-se a uma forte dose daquela fúria justa característica. Este grupo, sem dúvida, destaca-se por precisamente criar dinâmicas que vão desde a raiva intensa até o lamento melancólico, demonstrando uma ampla gama de emoções.
Ainda de destacar a capacidade de Saint Vincent (vocalista) variar na sua entrega vocal, alcançando novos patamares de expressividade. Mas esta expressividade não é sentida apenas através da voz do vocalista, mas também na presença, postura, expressões e movimentos de todos os elementos da banda.
Em resumo, a agressividade característica deste grupo, que é complementada por uma sensibilidade melódica, cativou os ouvintes naquilo que foi uma experiência auditiva poderosa e emocionalmente ressonante! Esta atuação foi mais uma prova de que os SETH merecem estar no topo do black metal francês.
BORKNAGAR
É difícil expor em palavras o que foi este concerto, que foi bem mais do que um concerto, foi uma autêntica viagem à Escandinávia, mais concretamente, à Noruega!
Existem bandas que lutam para encontrar um vocalista com uma voz diferenciada e característica. Pois bem meus senhores, este grupo não conseguiu não um, não dois, mas três vocalistas nestas condições! São eles o gigante ICS Vortex (ex-Dimmu Borgir e Arcturus) que também é baixista, o carismático Lars A.Nedland, também teclista, e ainda o cativante Jostein Thomassen, que também é guitarrista. É deslumbrante ouvir estes senhores cantar e é impressionante como os seus timbres e qualidades são claramente visíveis ao vivo, tal como em álbum. Além disso, cada um deles faz algo diferente, que encaixado no momento certo da música, dá uma gigante versatilidade à banda.
Entrando numa vertente mais técnica, dentro do mundo do viking/ folk metal existem duas realidades: a mais virada para a brincadeira e festa, que no fundo contam a história da sua herança numa vertente mais festiva e alegre, e a realidade em que integram as filosofias da herança “Viking”, desde as disposições líricas e perspetivas pessoais, até à construção da música em si de uma forma mais séria e até dramática. Os Borknagar são a segunda realidade, e que bem que o fazem! Embora não tenham ganho a mesma fama ou reconhecimento que Enslaved, sinto que Borknagar foi um dos primeiros grupos a conseguir isto com sucesso e até hoje nunca se afastaram muito do caminho traçado.
A atuação arrancou com o tema “Nordic Anthem” do mais recente álbum, tema este que tem foco na melodia, harmonia, forma, dinâmica, orquestração subtil e um ritmo forte e contagiante. Lazare assumiu o controlo da música e levou-nos a todos com ele na sua reflexão incrivelmente complexa, poderosa e emotiva. Estávamos no primeiro tema do concerto e já foram capazes de nos elevar a proporções épicas… Seguiu-se o tema “Fire That Burns” e aí já houve coro do público em todos os momentos do refrão. Aqui existe uma combinação interessante entre vozes de black metal e limpas de ICS Vortex e Lazare. Não se esforçando demasiado na criação do ambiente desejado, com a simplicidade e honestidade conseguiram-no fazer.
Seguiram-se temas que são marcos da fase mais recente dos Noruegueses, como “The Rhymes of the Mountain“, “Up North” e “Voices“. E de seguida, uma das minhas favoritas, “Colossus” do já longínquo álbum Quintessence (2000). Neste tema, ICS Vortex demonstrou, ainda mais, o quão majestosos, poderosos e emotivos são os seus vocais limpos. Este tema tem melodias vocais tão cativantes e épicas que se torna muito difícil expressar por palavras. Mas a interpretação do mesmo foi, para mim, um dos grandes momentos da noite.
Já ultrapassado metade do concerto, o tema “Moon” do mais recente álbum Fall (2024) foi uma excelente escolha para a setlist. Este tema tem uma introdução enegrecida que se desenrola e dá lugar a uma energia linda e vocais poderosos. Ainda do mais recente álbum foi também interpretado o tema “Summits” que abre o disco.
Para voltarmos aos primórdios da banda, o icónico tema “Dauden” do primeiro álbum de estúdio auto intitulado de Borknagar (1996) foi protagonista desta viagem no tempo. Uma fase dos Noruegueses onde o black metal cru era mais presente, mas sempre com os seus toques folk. Para finalizar o concerto, o tema escolhido foi “Winter Thrice“, tema este que em álbum é interpretado com Kristoffer Rygg (Ulver). Esta faixa é absolutamente espetacular em todos os sentidos, torna-se difícil acreditar que realmente existe. Tem tanto de cortante como de belo e é das que melhor representam (se não a que melhor representa) a realidade num inverno norueguês e da banda em particular. E a interpretação do mesmo ao vivo é indescritível…
Que concerto, que momento, que viagem que foi esta atuação de Borknagar! E que desejo tão grande de os ver novamente. Estes senhores estão no top das bandas Norueguesas (e não só) e parece que tudo correu na perfeição durante a atuação. Posso dizer que foi dos concertos mais marcantes que já tive até aos dias de hoje.
ROTTING CHRIST
E a hora mais esperada chegou. A sala já estava completamente cheia para receber os nossos companheiros gregos Rotting Christ, e que momento foi este!
O público português fez uma recepção apoteótica aos helênicos que foi sentida como se de uma epopeia pelas várias épocas e várias civilizações mundanas, na busca da verdade e da liberdade de pensamento, que muitas vezes o cristianismo nos absteve. A energia esteve presente do início ao fim da atuação em todas as faixas (sem exceção) tocadas pelos gregos e isso demonstra o quão fãs somos desta enorme banda que conta já com “35 years of evil existence“.
O concerto arrancou com “Aealo” iniciando a viagem pelo meio, sensivelmente, da carreira destes senhores (2010). Um tema que assume o sentimento primitivo e antigo, e que nos remota para uma realidade em que a vida do guerreiro primitivo girava em torno da superstição e da oração no altar do deus desconhecido. O coro feminino (que aqui foi apresentado em gravação) torna-se fulcral aqui pois representa o choro das mulheres perante essa realidade. A viagem à Grécia antiga não poderia ter arrancado de melhor forma.
Seguiu-se um tema do mais recente álbum Pro Xristou (2024), “Pretty World, Pretty Dies“, onde são incorporadas lindas melodias, cantos e coros inspiradores, reforçando o ambiente desejado. E que bem que funcionou ao vivo! Um tema que, tal como a totalidade do álbum, apresenta uma sonoridade mais épica e melódica, incorporando elementos de música folk tradicional grega e sons neoclássicos e sinfônicos, juntando ainda cantos ritualísticos e coros grandiosos que foram cantados em uníssono na sala 1 do hardclub.
De seguida voltamos a viajar no tempo para 2010 e 2013 com os temas “Demonon Vrosis” e “Kata Ton Demonan Eaftou“, faixas que são autênticos marcos na carreira dos Rotting Christ e que dificilmente poderão sair da setlist. Outro tema que dificilmente sairá do alinhamento, mas agora estando a falar de um bem recente, é “Like Father Like Son” do mais recente álbum. No momento em que este single de avanço saiu, o meu primeiro pensamento foi que tinha de ser interpretado ao vivo, e que seria, com todas as garantias, um daqueles temas para o público berrar com punho cerrado. Harmonioso do início ao fim, os ouvintes foram levados ao topo de uma bela montanha grega, e certamente sentiram a forte relação paterna retratada na música.
Chegou a hora do álbum Rituals entrar em ação com com o tema “Elthe Kyrie”, onde fomos imediatamente transportados para uma tribo primitiva. Importante destaque para o solo de guitarra presente neste tema, interpretado pelo habilidoso Kostis. “…Pir Threontai”, “The Sign of Evil Existence”, “Non Serviam” e “Societas Satanas” permitiram uma viagem pela discografia mais antiga dos gregos, até regressarem a 2013 com “In Yumen-Xibalba” . Aqui fomos levados numa jornada euforicamente brutal, militarista e até maníaca, com bateria e trabalhos de guitarra peculiares que surgem de forma surpreendente. Sakis aqui apresenta-se com um estilo diferente, como se os seus vocais passassem de sussurros mortais para cantos falados quase limpos e em gritos estranhamente tensos que simplesmente funcionam na perfeição ao vivo!
Seguindo para os últimos temas antes do encore, ainda do mesmo álbum Κατά τον Δαίμονον Εαυτού, “Grandis Spiritus Diavolos” arrancou com o suporte do público. Meio milésimo de segundo após se ouvir o início do tema, já o público sabia o que aí vinha e aquele coro ousado foi cantado por todos. Este tema funciona tão harmoniosamente ao vivo que se torna indescritível. Já em tom de despedida, onde Sakis agradeceu todo o carinho que o público português sempre dá aos Rotting Christ, “The Raven” foi o protagonista seguinte remetendo para o o penúltimo trabalho da banda.
Os elementos da banda agradecem a todos os presentes e ausentam-se do palco mas não se fez silêncio na sala. Todo o público gritava pelos gregos que, alguns segundos depois voltaram a pisar o palco, a pegar nos instrumentos para tocar o último tema daquela calorosa noite, “Noctis Era“. Esta faixa pode considerar-se excelente para encerrar toda a viagem vivida, pois fornece uma série de melodias helênicas nítidas e definitivamente autênticas que fluem junto de instrumentação nativa, tornando-se uma boa representação daquilo que os Rotting Christ são enquanto banda, e daquilo que se passou durante a atuação.
Talvez seja uma perspectiva muito pessoal, mas gostava que tivessem sido tocados mais temas do Pro Xristou, nomeadamente “Yggdrasill“, “Saoirse” ou “The Apostate“, no entanto também seria difícil para mim retirar alguma das presentes na setlist. O mais fácil seria mesmo um concerto de 3 horas (…). Mas estes senhores são donos de um estilo muito próprio e são verdadeiros profissionais ao vivo. Sempre muito interativos com o público, sempre a puxar pelo mesmo, mesmo não sendo isso necessário, e sempre cheios de energia contagiante. Felizmente teremos a oportunidade de os ver num futuro relativamente próprio, no Milagre Metaleiro Open Air 2025 (lá estarei!).
Foi uma noite memorável nas várias facetas da palavra e uma demonstração que através do metal, vários recantos da mente humana são explorados e várias mensagens são espalhadas que tem tanto de importância como de variedade.
À Notredame Productions, mais um obrigado por proporcionar estes eventos e oportunidades aos metaleiros portugueses e neste caso nortenhos. Tudo correu às mil maravilhas e não tenho qualquer dúvida que todos saímos de coração cheio naquilo que foi uma das noites mais memoráveis do ano.